Sou meu maior objeto de estudo
Como disse uma vez Clarice Lispector, “eu também sou o escuro da noite”. Desde que me entendo por gente, eu me questiono. É a dúvida que me ilumina
Fotos: Luís Tajes (@luistajes)
Certeza é o lugar que acomoda. E é confortável como o sofá que abraça e a rede que balança. Dá paz como o ir e vir do mar e o filho dormindo. É seguro como o cafuné do amor e o colo da mãe. Há, no entanto, o caminho paralelo, um tanto tortuoso, porém não necessariamente oposto. Certeza e dúvida são duas trilhas distintas, que raras vezes se afunilam, permitindo a nós cruzar a linha. Se eu tivesse que escolher uma certeza, seria: duvidar é preciso. Duvidando, eu acredito, vou ao longe.
Falar de dúvida, para mim, é falar de autoconhecimento. Pode ser bem confortável o colchão de autorreferências, que serve para aprovar e justificar todas as nossas escolhas. Por vezes, serve para deitar um corpo feito de pseudoverdades. Cheinho delas. E nos sentimos plenos para destilá-las por aí. As certezas que temos amargam com frequência na boca do outro. Agridem os ouvidos alheios. Não raro, ofuscam a realidade. A certeza é o clarão do ego. Cuidado. Ela cega.
Houve um tempo em que me lembro cheia de muitas certezas. E provavelmente as ventilava com arrogância por aí. Inteiramente grávida de razões. Procriava frases de efeito, palavras duras e cheias de julgamento. De vez em quando, reconheço, ainda faço essas coisas. Na maior parte do meu tempo de vida, no entanto, eu duvidei. E duvidei mais de mim do que de qualquer um.
Duvidei das minhas capacidades – todas elas, uma por uma. De crescer saudável, de criar filhos, de produzir bons textos, de amar, de me apaixonar de novo, de falar alto e de falar não, de ganhar dinheiro, de ser bonita, de ser amada. Duvidei da minha fé tantas vezes. Duvidei sempre e tanto. Graças a essa incapacidade de viver sem uma coleção de pontos de interrogação, encontrei aquilo que acredito ser a mais bonita oferta que o ser humano tem para oferecer ao mundo que o recebeu: a busca pelo autoconhecimento.
Desde muito pequena, eu me recordo de me investigar. Às vezes, parecia aquela borboleta com as asas presas no isopor da aula de ciências para um estudo que nunca fez muito sentido pra mim. Era pra entender talvez a morfologia dos insetos. Aquilo me dava uma imensa gastura, mas eu confesso que havia um certo sadismo na experiência. Logo eu que adoro borboletas... (Certa vez, eu e minha amigas bem pequenininhas, na época da Brasília em construção, passamos uma semana torturando um inseto. Moribundo já, foi batizado de Igor e teve direito a um enterro digno).
Na adolescência, revolvia minhas batalhas internas com o papel. Na faculdade, duas amigas queridas, Tina e Ana Lúcia, eram não apenas a escuta atenta que precisava, mas as minhas referências de pessoas interessantes. Pessoas que admiramos normalmente são as nossas janelas para o universo. Você olha para elas e parece que está vendo o mundo lá fora. Lindo, com todas as contradições e imperfeições que o tornam ainda mais interessante. Nós éramos um poço cheinho de problemas diversos, mas dividíamos dúvidas idênticas sobre o amor, o ardor, os sonhos, o sentido da vida. Ainda que na companhia de muitos chopes ou promoções do McDonalds. Continuo tendo muitas pessoas-janelas, graças a Deus.
Quando me tornei uma jovem adulta que paga as contas, investi em terapias. Um bocado delas. Da tradicional ao psicodrama; da constelação familiar ao recente coaching ontológico (que não é uma terapia, embora seja terapêutico). Também, me desculpem os céticos, não sou viciada, mas recorro de vez em quando aos oráculos, dos tarôs aos búzios e por aí vai.
Eu adoro ter razão, amo quando minhas teorias se confirmam, mas com o decorrer do tempo, percebi que estar certa não é muito diferente de estar errada. Sofremos também com os acertos. A consequência de uma pode ser a sensação boa de dever cumprido, aquele risinho sádico do “eu não disse”, mas... não vai muito além disso. Estar certa (quando estive) não me poupou de tristezas, nem das culpas que carreguei nos ombros.
Descobri isso muito recentemente. Talvez hoje tenha mais apreço por pedir desculpas simplesmente do que de tentar convencer alguém que a razão está comigo. Porque, de verdade, posso não tê-la. Ou posso descobrir que a certeza de outrora é como fruta no pé. Cai de madura e vira comida de inseto. Apodrece.
Por isso, investigar a si própria é renascer com a dúvida. É abrir espaço para novas e desafiadoras descobertas. Compartilho aqui uma lista do que aprendi ou amadureci recentemente com meu processo de coaching ontológico, no qual tive como mentora a maravilhosa Mônica Ribeiro. Por enquanto, são certezas. Até quando? Desconfio que por um bom tempo. Eis:
1. É preciso se orgulhar das próprias experiências
Por muito tempo, questionei minha carreira como jornalista. Mais de duas décadas no mesmo lugar, a redação do Correio Braziliense. Por que, paralelamente, não tracei um plano B sólido? Por que não fiz cursos, não estudei novas mídias, não fiz o mestrado que tanto sonhei, não busquei outros empregos? Descobri que, de verdade, não vi o tempo passar e nem quis ver. Vivi cada dia ali como se fosse o último, contei cada história que escrevi com ardor e amor, ajudei cada estagiário a se tornar um profissional melhor. Amadureci meu texto e escutei cada personagem com devoção por suas histórias. Entendi que é uma experiência tão digna e tão superior para um ser humano que hoje me sinto realizada.
2. O que admira nos outros está em você
Na primeira sessão de coaching, Mônica me pediu para listar algumas pessoas amigas ou que eu considerava referências e as características que mais admirava nelas. Por muito tempo, olhava para essas pessoas e me perguntava por que não era daquele jeito. As características? Confiança na própria espiritualidade; alegria e bom humor constantes, resiliência e preocupação com o próximo; coragem de dizer não e uma escrita tocante e criativa. Ela me disse: você só admira no outro o que já está em você. Reconheça e pratique. Bingo! Já não duvido da minha fé e tenho todo o resto para ver no espelho. Exercitar é preciso. Olhe para você e veja o que admira no outro.
3. A gente nunca é uma coisa só: integre as duas, as três, as mil...
Todos temos um lado que se mostra e um lado oculto. Como os outros te veem? O que existe aí dentro que você não mostra? As pessoas me veem serena e calma. Eu me vejo um vulcão, às vezes parece inativo, mas sempre ameaça entrar erupção. Meu lado artista, escritora, podia correr como lava, levando fogo, o fogo da inspiração. Que grandeza eu tenho e gostaria de dar ao mundo?, ela me pergunta. Queria inspirar as pessoas com a minha escrita. O desafio aqui era integrar os dois seres que habitam em mim. Transmitir, de fato, essa serenidade, mas espalhar os bons ventos da minha criatividade. Sigo tentando.
4. O corpo é o único que pode controlar a mente
Pé no chão, banho de chuveirão gelado, andar pelo meu quintal contemplando as plantas, provar fruta tirada do pé, respirar profundamente, sentir o sol e o vento. As conversas da mente são ervas daninhas. Elas nos conduzem para a ansiedade e a angústia, nos levam para o terreno das expectativas, para o medo. Mônica me desafiou. Escutar o corpo, dizer a ele o quanto somos parceiros, cuidar dele, molhar a cabeça com os olhos fechados, hidratar a pele, vestir uma roupa confortável, olhar no espelho e gostar do que vê. E, de repente, a mente dá trégua, acalma. Põe uma música e deixa vir só o sentimento bom. Parece tilelê? Funciona. Vai por mim. Nesse processo, aprendi também a ouvir minha intuição, uma aliada muito poderosa.
5. Escreva sobre o nada, mas escreva
Todo dia, logo de manhã, escreva um diário. O que? Descreva seus sonhos. Não sonhou? Escreva que não sonhou. Tá calor ou frio? Escreva sobre o clima. Escreva que seus dedos doem quando escreve à mão. Escreva que não quer escrever. Aos poucos, vem algo que quer botar para fora. Escreva sua biografia, reconte seus segredos. Deixe tudo no papel e siga para o dia que te chama. Essa prática abre janelas para a inspiração. Nesse processo de coaching, que durou quatro meses, li vários livros, fiz alguns cursos, e todos repetiam que fazer um diário acorda aquela criança que existe em nós, inocentes e criativas, inteiras de vontade de produzir coisas interessantes, mesmo que seja apenas uma travessura boa. Experimente!
6. Defina um propósito e espante os fantasmas
Logo no início, disse à minha coache: quero ser leve; não aguento mais tanto peso. Ela disse: qual seria seu propósito? Encontrar um caminho profissional na escrita; chegar aos 50 anos fazendo o gosto ou gostando do que faço. Se as duas coisas caminharem juntas, melhor. O que pode afastar você disso? Aqui dentro de mim, mora uma juíza e ela tem um pêndulo: ou é desprezível ou é incrível. Sempre julgava assim. Há um meio termo muito interessante. Viva nele: publique algo mesmo sem achar perfeito; não sabote suas ideias antes de testá-las; não deixe de fazer, nem de ser por conta da opinião alheia. Por fim, expulse a juíza, jogue o controle na lata do lixo e mostre a que veio.
7. O tempo e a sustentação do propósito
Voltar a escrever era a minha maior vontade. Como encontrar inspiração e tempo diante de tantos afazeres? Esse é o meu maior desafio ainda. Tempo? Tenho um emprego em horário integral; tenho um negócio em plena pandemia, no qual sou responsável pelo financeiro e pelas redes sociais; tenho uma casa para limpar, roupa para lavar, almoço para fazer todo dia. Que tempo seria suficiente para tudo isso? Não superei essa parte. Mas… voltei a escrever este blog com imensa alegria - e isso é muito - embora sem a frequência que gostaria. Chamei uma pessoa para voltar a ajudar com a casa uma vez por semana. Dividimos em família as tarefas domésticas. Organizei meu dia em grandes eixos e mudo tudo quando o dia pede. Ainda fiz cursos, assisti a duas séries completas, li livros, voltei em parte ao trabalho presencial (moro a uma hora de lá e, no caminho, ouço podcasts de literatura, entre outros). Ouço jazz toda quarta no Gentil Café e fico lá aos sábados à tarde para sentir o quanto aquilo é meu e eu gosto. Sustentar o blog, a escrita, o café, o emprego, uma obra em casa e a sanidade não é fácil. Mas aprendi que não estou sozinha.
8. Conecte-se consigo própria, com os seus, com os outros
Vivemos numa rede sem fio. Estabelecer conexões é imperioso. Comigo, me liguei à minha intuição. Respeitá-la e ouvi-la é dizer a si próprio o quanto o universo conspira para te ver bem. Somos criaturas da natureza e de Deus (seja Ele qual for para você). Dentro de nós, há uma voz que precisamos escutar. Eu decidi ouvir. Também devemos e podemos chamar o outro que não nos conhece, mas que pode nos ajudar a encontrar caminhos; referências que você admira e que podem te ajudar. Também entender que o outro tem seu próprio tempo e que você não é prioridade absoluta. Entendi que minha filha, Paula, apesar de sua condição de privilégio, tem o direito de sentir saudades da vida que tinha, dos amigos, do antigo apartamento. Me conecto com as necessidades dela e com as minhas. E compreendo que empatia não é abstração e que sentimentos compartilhados favorecem o encontro com uma vida melhor e mais frutífera.
É isso.
Se você ficou comigo até aqui, só tenho a agradecer. Escrevo muito, eu sei. Textos longos, talvez muito para o tempo que você tenha para se dedicar ao que o outro tenha a dizer. Ou talvez seja uma palavra que faça algum sentido pra você.
Na última sessão de coaching, Mônica tirou duas cartas de seu baralho encantado. Uma era a tolerância e dizia assim: “Compreender que somos diferentes. E que nossas diferenças se completam formando o todo e nos tornando iguais. No direito de ser quem é. De trilhar o próprio caminho. De ser aceito e amado incondicionalmente. Compreender e aceitar e seguir o fluir e o refluir da vida”.
Sejamos tolerantes. Sejamos animados sempre pela palavra e pelos sentimentos que nos abastecem.
Livros que li, reli ou estou lendo:
A Louca da Casa - Rosa Montero
Tudo é Rio - Carla Madeira
Grande Magia - Elizabeth Gilbert
Mulheres que correm com os lobos - Clarissa Pinkola
O Pequeno Príncipe - Antoine de Saint-Exupéry
O Caminho do Artista - Julia Cameron
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