Diga 33 e eu te direi: “não passou rápido”
Grávida aos 15 anos, pari uma ‘Jeannie é o gênio’. E o feitiço não virou contra a feiticeira.
Costumo dividir minhas memórias em caixinhas. Existem as intactas, normalmente as mais longínquas, e as que estão sob o comando da ventania – vão e vêm sem qualquer controle. Outras ainda se perderam no tempo e acredito que foram para o sempre. Não lamento os esquecimentos. Apenas honro o que ficou.
Eu me lembro exatamente o dia em que meus pais souberam que eu estava grávida. Tinha 15 anos e uma cumplicidade única com aquele ser que crescia dentro de mim. Só eu e aquele bebê sabíamos. Nenhuma amiga, nem o pai, nem as irmãs. Guardei para mim um segredo que vertia em lágrimas dia após dia, noite após noite. Podia ser uma impressão, um engano, fruto de uma menstruação incerta e fugidia, tão típica da adolescência. Podia, mas não era.
Enquanto rezava para Nossa Senhora, durante o banho e na hora de dormir, alisava a barriga e explicava àquela criaturinha apressada que não lastimasse meu choro compulsivo, nem o confundisse com falta de querer. Era apenas o desespero de uma menina vivendo fora de seu tempo e de seu lugar. Eu era fruta verde caída da árvore. Alguém havia de colher antes que os bichos comessem. Então, meus pais me colheram. Mais uma vez.
Pedi à minha mãe para me levar ao médico, pois a menstruação estava atrasada. Não pedi que ela saísse da sala na hora do exame. E o susto veio logo ao tirar o avental. Com 47Kg, havia barriga e um coração já aos pulos no primeiro exame. Mais de quatro meses de gravidez. Não houve grito, sermão, nem choro que não fosse o meu. Talvez um “agora não adianta”, o máximo de bronca que ganhei.
Mamãe contou para o meu pai, que ficou no seu silêncio habitual no quarto. Ela então me levou para a casa do meu namorado para eu dar a notícia. Do alto dos seus 18 anos e com uma pneumonia, ele fez o que deveria: assumir comigo aquela criança e dizer que eu não ficaria só.
Solidão sempre foi meu estado natural. Era comigo que resolvia o que me revolvia. Eu e eu. Dificilmente partilhava segredos, era excessivamente tímida, calada ao extremo. Desde aquela época, o papel era meu companheiro. As palavras escritas eram meu oxigênio quando faltava o ar nos afogamentos típicos da adolescência. Até aqueles dias. Depois, começou um feitiço.
No dia seguinte à notícia, acordei às 6h como sempre fazia para ir a pé para a escola. Estava no primeiro ano do segundo grau de uma escola, à época um tanto moderna. Não faltava aula, amava estudar, era do tipo CDF e adorava ajudar as amigas. Estava arrumando meu material para cumprir a rotina e dar a notícia aos meus orientadores, professores e colegas, que seguiram me protegendo. Meu pai entrou no escritório, aos prantos e com braços abertos, para um abraço e só poucas palavras: “Se ele não assumir, eu assumo”.
Dali em diante, a minha família se transformou em puro afeto. Papai passou a me levar de carro para o colégio e fazer meu café da manhã. Mamãe reagia como leonina às fofocas e aos olhares enviesados para mim. Eu tinha vergonha e um sentimento de culpa por decepcioná-los que me corroía por dentro. Mamãe parecia ter orgulho. As duas famílias se uniram em uma só. Um enxoval lindo, cheio de bordados cearenses, uma espera alegre e intensa compartilhada por todos. Fui cuidada ao extremo.
Ser cuidada é um privilégio. Nada me faltou. Ainda assim, é preciso confessar que de vez em quando faltava ar, espaço, segurança, confiança, embora soubesse no íntimo que daria conta. Esqueci que desejava fazer biologia marinha e morar perto do mar. Esqueci qualquer plano que não acolhesse minha filha. Esqueci que existia um “eu” além de nós. Esqueci, sobretudo, que era uma adolescente e que o tamanho daquele medo era proporcional ao momento. Eu estava naquele rio caudaloso e ainda não sabia que me atiraria nele muitas e muitas vezes ao longo da vida.
O casamento com o pai da minha filha não vingou por muito tempo, mas as nossas famílias seguem amigas por mais de três décadas (também pelo fato de nossos irmãos, Patrícia e Caio, terem se casado e estarem juntos até hoje). Um encontro muito lindo de almas que se uniram pelo amor aos filhos e à neta.
Fernanda nasceu dez dias antes do prazo na Casa de Saúde São Braz na madrugada do dia 21 de janeiro de 1988, de parto cesariana. Bacia estreita, falta de encaixe e absoluta ignorância em relação ao que hoje se propaga sobre gravidez, parto, maternagem, etc. Entrei e saí sozinha, de maca, na sala de parto.
No corredor que dava para a sala de cirurgia, havia um cheiro de comida misturado ao de éter. Sentia um pouco de frio e contrações ainda leves. E naquele momento senti a maior solidão do mundo. Ela, que sempre estivera comigo ali na barriga, ganharia uma vida própria. Sabia pouco do que me esperava como mãe. Que mulher nasceria daquele parto era uma grande incógnita. Quem iria entender o que eu não falava? Quem iria trocar comigo tantas energias, fluidos, expectativas?
Um parto rápido, tranquilo, sem intercorrências e com congratulações da equipe pelo meu bom comportamento. Dormi o sono dos justos e quando a anestesia e o calmante passaram o efeito, senti as dores fortes da cesariana.
Pensei: passou o pior, que era o medo do parto. Passou a vergonha, além dos desejos íntimos de me refugiar em mim mesma. Passaram as dúvidas de que eu daria conta de mim e de mais alguém. Como um feitiço. Pari a Jeanne, do seriado que eu amava na infância. Achava mesmo que aquela menininha era uma bruxa boa que conseguiu me transformar e a toda a família que a cercava.
Desde então, foram muitos feitiços e ela segue fazendo. Hoje minha filha faz 33 anos. E não passou nada rápido. São mais de três décadas de encantos diversos. Toques de amor, humor, sabedoria. O maior deles foi me fazer querer ser alguém melhor. Ela me ensinou a ter menos culpa, a me libertar dos meus medos. Por ela, fui à terapia. Com ela, fui a muitos e muitos lugares, dos mais obscuros aos clarões da aprendizagem. Sempre saímos juntas das dores, as minhas e as delas.
Ela aceitou todas as minhas liberdades e vivências tardias de farras, erros e novos relacionamentos. Tornou-se mais livre que eu. É independente, humana, liberta, aberta para o mundo e para as pessoas. É trabalhadora, inteligente, humana, amorosa com a família, cuidadosa com os irmãos. Sabe ser muito encantadora e, às vezes, irritantemente questionadora (que o digam seus professores). Segue sendo minha maior cúmplice. E isso não tem preço.
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