Se você não virou suco
Sobre o que vamos levar de um ano que não vai terminar: as despedidas sem fim e as esperanças teimosas
Foto: Luís Tajes
Não corre um vento. As árvores nem balançam. Cadê os passarinhos que hoje não vieram? O sábado acordou com preguiça. Deito na rede, não alcanço o pé no chão para empurrar e sentir aquele vaivém de que tanto gosto. Pego e solto o livro. Trago o celular, que não seduz. Não semeio vento, mas hei de colher a tempestade que se avizinha. Só nuvens escuras no horizonte. Logo mais, a ventania. Rogo que seja Iansã, levando o mal. Em dias assim, só a espera alcança. Aprendi que morar perto da natureza exige calma e paciência extremas, para não se desencantar das pausas para respirar.
Tento tomar coragem para arrumar a casa, montar a árvore de Natal e esperar os recados que o tempo ansiava por dar. Posso ouvir uma música boa ou sentar para escrever. Mas, desta vez, o corpo não obedece aos comandos. Feito um controle remoto defeituoso, a mente diz uma coisa, mas meu eu preguiçoso entende outra. Ou, talvez, seja meu eu esperançoso.
Penso aflitivamente no ano que foi sem ter sido. E foi tanto e, assim mesmo, tão pouco. Hoje, falo sobre a contradição imensa que a vida nos impôs. Sobre um 2020 que destelhou tetos, tirou o chão de tanta gente. Sobre janelas que viraram portas e portas que viraram paredes, muros, clausuras.
O acervo de 2020 tem coisas assim:
Levar apenas o olhar para longos passeios do lado de fora. Enterrar corpos sem rituais de adeus. Encontros remotos e abraços virtuais. Reencontros com uma nova intimidade. E o ponto final nas intimidades que ganharam tanto espaço entre si, a ponto de se tornarem vazios intransponíveis.
O ano dos verbos IR e FICAR. Gente que mudou de endereço, de emprego, de par. Gente que cansou de tanto permanecer, penou de solidão, padeceu de ansiedade.
2020 foi a corda esticada até arrebentar - ou quase. Quantas vezes conteve a vontade de gritar? Quantas vezes esteve à beira da exaustão? Quantas gargalhadas deixou de dar?
2020 foi o ano de virar elástico, polvo, caramujo ou flor. Ou tudo junto. Romper limites, ser multitarefas, ter vergonha imensa do Brasil, mudar tudo e fazer diferente.
2020 foi morrer e renascer todo dia, todo tempo.
2020 foi a cova coletiva. Mais de 1,5 milhão de pessoas mortas no mundo, quase 180 mil só no Brasil. Quase 70 milhões de infectados, confinados e protegidos, ou nas filas da agonia, à espera de leitos, respiradores e de alguma sorte para vencer o vírus. E não acabou.
Dorinha e o beija-flor azul
Para mim, aquele sábado preguiçoso que me convidava a pensar nesse ano tão estranho era, na verdade, a chave virando. Era a minha família a caminho de entrar para as cruéis estatísticas. A voz do anjo havia sussurrado ao nosso ouvido que não havia chance de recuperação para dona Dora, minha sogra querida, que perdeu a batalha para Covid-19, na segunda-feira, 7-12.
Ela se cuidou muito, se isolou e tomou todas as medidas de prevenção, mas, numa cidade pequena, lotada de turistas sem máscara, acabou infectada. Foi rápido, avassalador e dolorido. Mas ela ganhou as asas de liberdade para um mundo melhor, muito melhor, assim eu acredito. Certamente sem um governo genocida como o nosso.
Na última terça-feira, horas depois de sua passagem, recebi a visita de um beija-flor azul, que parou na porta de vidro da minha cozinha. Ele, que sempre beija as flores do meu jardim, tagarelou com as asas bem pertinho. Viera mostrar o quão bonita é a natureza das coisas assim como elas são. Estações que vêm e vão, chuva que molha, seca que seca, vida que segue, mesmo com a morte.
Passei a lembrar com muito carinho da alegria da dona Dora. Dos macarrons do Daniel Briand e bolos da minha mãe que dividíamos quando ela vinha a Brasília nos revéillons. Dos nossos encontros em Torres, da foto da família no mirante, do passeio de Maria Fumaça por Bento Gonçalves, da malinha verde que ela trazia na mão, cheia de envelopes de dinheiro que economizava para nos presentear – ela gostava de dividir e dar um pouco na entrada e um pouco na saída. Trazia e levava muitas histórias, que daria um ano inteiro de recordações para contar, com direito a fotos impressas.
Leitora voraz, trabalhadeira incansável até os 85 anos, cultivou memórias bonitas da vida. Não se atinha a miudezas, como fofocas e lembranças ruins. Deixou um legado que rende orgulho para sua família maravilhosa, que me recebeu de forma tão amorosa e acolhedora. Sentiremos uma saudade infinita. Mas a dor da partida não apaga o exemplo e a mensagem.
Para quem segue por aqui
Estamos às vésperas de um Natal e um ano-novo um tanto melancólicos, eu sei. E talvez já não faça muito sentido listar resoluções. Só revoluções, pequenas e pessoais. A vida é um rito de passagem e ele não é longo o suficiente para suprir todas as nossas expectativas. Não acredite em nenhuma falsa promessa que 2021 queira lhe fazer. Vamos nos dar por satisfeitos se tivermos uma vacina.
Mergulhe no rio caudaloso, tome ar de vez em quando, evite corredeiras perigosas e sobreviva, afinal é para isto que estamos aqui. Estar vivo e poder contemplar as coisas boas desse existir nos basta. É válido um pensamento esperançoso e uma ação firme de compromisso com o respeito a todos e com o planeta que nos acolhe. Não o encolha.
Eu só quero remar para o lado certo e continuar a escrever essas linhas por aqui ou por ali. Em 2020, fiz as pazes com a escrita. E isso nem fazia parte dos meus planos. Com algum esforço, a gente encontra um motivo, ínfimo que seja, para perdoar um ano tão infiel aos nossos desejos.
Se você não virou suco, como aquele belo personagem da filmografia brasileira, o poeta retirante Deraldo (confundindo com um operário que mata o patrão), ficou resiliente, fincou suas raízes mesmo na incerteza e manteve o que importa. Guarde o essencial.
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