O crepúsculo me acordou
Nos nossos dias mais nublados, ainda podemos observar um pôr-de-sol de tirar o fôlego. Esse texto é sobre a beleza do que não pode ser mudado...
Eu estava voltando para casa de carro. Vi pelo retrovisor um incrível crepúsculo. Todos os tons do pôr-do-sol de um dia em que o sol não deu as caras. Rosas e laranjas permeados por um azul nublado. Asfalto molhado de chuva.
Cena bonita que só.
Era o fim de uma semana daquelas que a gente vence aos tropeços. Cambaleando entre os devaneios e a concretude dos fatos que não podem ser mudados, em frente a uma fila de carros, vi aquele dia indo embora de um jeito que não via há tempos. Tive vontade de parar e fazer uma foto, mas fiquei só espiando pelo retrovisor mesmo. O dia ia com pressa, mas de alguma forma enxerguei sentido na frase-clichê da atualidade: vai passar, uma hora passa.
Deu uma sensação de paz. Liguei o rádio e fiquei ouvindo um podcast lindo sobre recomeços (50 Crises, de Cris Guerra). Num daqueles insights bobos, me veio aquele pensamento que nos visita sempre: “Se eu pudesse voltar no tempo...”. Não, eu não voltaria. Mas hoje, quando faço aquelas inevitáveis viagens ao passado, eu procuro enxergar tudo de forma diferente.
Hoje eu sei e sinto que tudo o que fiz e vivi valeu tanto... Filhos, casamentos, negócios, empregos, casa. Uma família encantadora, com todas as suas contradições, diferenças, manias. Viagens maravilhosas. Encontros profundos comigo mesma. Amigos de décadas. Isso já é de uma grandeza espetacular para uma vida. Tudo o que precisamos é reconhecer e honrar a própria história, inclusive a que já está escrita.
Se planejo com incrível persistência mudanças e reinvenções, não posso jamais ir sozinha. Não abandono as tristezas e as decepções que experimentei, nem as dificuldades que se mostraram tão desafiadoras. Não largo a mão de quem esteve comigo, inclusive a parte de mim amedrontada, assombrada pelos fantasmas de sempre.
Passamos um tempo enorme da nossa vida revisitando nossas atitudes, nutrindo arrependimentos e criando justificativas para sonhos não realizados. Qualificamos relacionamentos desfeitos, planos não concretizados, empregos perdidos, tudo o que não correspondeu às exatas expectativas como fracassos retumbantes. Também atribuímos culpa a nós mesmos e aos outros pelas frustrações acumuladas.
Experiências são e serão sempre vivas. Nossa biografia é feita delas. Ainda que não possamos mudar o já feito, podemos olhar de um jeito diferente, com generosidade, gentileza e, sobretudo, humor. Sempre haverá beleza e graça, mesmo na tristeza.
Fiz 49 anos mês passado e tinha em mente tirar na gaveta alguns projetos que manteriam minha sanidade até os 50. Seria a continuidade, a sustentação do meu propósito: colocar minha escrita no mundo.
Mas...
É necessário entender que, em algum momento, todos nós perdemos o ar. A vida engasga a gente. E é aos sustos que a gente volta. Num instante ou num rompante, recuperamos a respiração normal e seguimos o curso. Neste ponto, olhar para trás só faz sentido se for para ver a beleza do que foi vivido.
Vivi, em diversos períodos, um vácuo de escrita – o último post aqui foi há dois meses. Este texto que você lê agora veio e voltou várias vezes, mas estava pedindo para sair da gaveta. Pois outro está pedindo para tomar lugar. Às vezes, um texto é um parto dolorido e longo. É preciso respeitar nossas entranhas. Acomodar os movimentos lentos e contínuos até a hora da expulsão. Não costumo parir apenas letras. Saem as dores e todas as demais emoções represadas. Escrever é processo. Tanto quanto viver. Aceitar o passado também.
O que nunca morre
Nos últimos três anos, tenho a sensação de ter corrido uma maratona por dia. O cansaço intermitente e o balanço da esperança, que vêm e vai, transformam a rotina numa prova de resistência. Quem vence, afinal? Ou melhor: O que vence? Dias ruins se alternam com dias bons; noites frias com noites quentes. O incerto já virou o certo. E isso é o melhor da vida.
A peleja com o tempo vivido não é em vão. Ela deixa um punhado de lembranças e inúmeras histórias para contar. Não fosse isso como poderíamos sobreviver aos fins tristes, melancólicos, sombrios? Desde dezembro, minha batalha é para aceitar aquele fim inexorável, ainda tão misterioso: a morte. Tanto o passado quanto a morte guardam em si a imutabilidade. É possível, no entanto, olhar para tudo isso de uma forma diferente.
Perdi minha sogra, dona Dora. Perdi minha tia querida, a Bibi. Ambas em curto espaço de tempo para a Covid-19. A morte é a saudade para o sempre. Não fosse um passado de momentos muito felizes que tenho com elas, nada mais teria. Apenas um abismo, um buraco, um poço profundo. Mas não. Eu tenho a eternidade delas.
Quem vai, de alguma forma, permanece – como história, memória, exemplo, sorriso, lágrima que brota sem querer, coração que bate em outro peito. As fotografias agora são animadas. Têm movimento, gesto, voz. Basta olhar a imagem e ela se materializa na minha frente. Reviver sempre será possível.
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