Eu comigo mesmo
Como reaprender a respirar, deixar o choro livre e selecionar as importâncias
da nossa vida ajuda a atravessar essa pandemia dos infernos
foto: Luís Tajes
Acordei e dei com os olhos n’água. Pisca para transbordar, pensei. Vou piscar e, nesse lapso tão diminuto de tempo, quem vai morrer? É assim agora. Bora conviver com esses movimentos tectônicos internos, movendo nossas estruturas, deslocando paredes, ruindo certezas. Isso produz lágrimas e talvez lágrimas dissolvam angústias. Ou, como aconteceu com mamãe, provoquem alergia. Descobrimos que pode ser ácido o chorar do luto.
Não sei quanto tempo vai levar para parar de tremer tudo por dentro. Tento colocar o sangue em banho-maria, na temperatura morninha, assim não ferve as entranhas, nem solta as estranhas criaturas agourentas, respondonas e briguentas que entram sem convite a cada minuto.
Sim, eu sei. Existe algum ódio aqui no coração. Não se convive com uma marca de 4 mil mortes diárias impunemente. Mas uma hora eu mesma expulso esse ódio, porque ele não é meu. Nunca cultivei, nem dei abrigo. Há de sair assim que abrir um portal de luz: uma boa notícia, um armistício maravilhoso e perene com as palavras teimosas, um voto vitorioso para devolver ao Brasil a esperança de outrora. Olha quanta coisa é capaz de nos abrir para a dimensão vital do amor e da vida!
Eu prometi respirar. Parece pouco, mas eu juro que não é. Bem fundo até doer as costelas. Coloquei uma meta: cinco respirações profundas por dia. Só cinco. Não é possível que não consiga. Já são cinco dias. Consegui cinco. Devo comemorar? Já posso passar para 10, ao menos sete? Vai parar de doer um dia? Sou inteira feita de perguntas agora. E olha que andava louca para trocar dúvida por ação.
Então vai lá e faz. Sai da inércia. Use a criatividade. Você também ouve isso o tempo todo? Se fosse um microempreendedor como eu, certamente estaria meio farto, meio abusado de ter de dar conta de tudo, além da imensa frustração de não conseguir (ainda) sair pleno de uma “reinvenção”. “Olha só, fulano estava falido e conseguiu dar a volta por cima...” Ouço e leio isso o tempo todo.
Estou com a turma do vai por baixo mesmo, subindo para respirar de vez em quando, pagando um boleto aqui, outro acolá, buscando uma mão amiga, uma escuta atenta sem julgamento. O fato é que tão exaustivo quanto a pandemia são as soluções mágicas que inventam todo dia para quem está sofrendo e em desespero. E você me pergunta: a solução é ficar remoendo as dores e vomitar tudo aqui num blog pessimista?
Desculpem, não é essa a intenção. É que procuro a verdade. E talvez a minha aspereza com as frases feitas e as soluções prontas seja exatamente consequência do que, acredito, seja a minha verdade. Ela não é soberana. Pode até ser uma meia verdade. Mas é minha. Eu acredito firmemente que essa pandemia não veio para testar forças simplesmente. Ela veio para espanar qualquer poeira de onipotência de um bicho não domesticado chamado homem (espécie humana). Pena que talvez nem uma pandemia seja suficiente.
Imaginávamos estar tão protegidos... Nesse mundinho de bolhas comunitárias e de escudos virtuais, de pensamentos cristalizados e de vontades bobas que precisavam ser satisfeitas no imediato momento. Nós, cheios de opiniões, justificativas para tudo, culpas ridículas, sofríamos com um punhado de miudezas que cabia na mão, mas fechamos tantas vezes os olhos e os corações para os grandes problemas da humanidade, das pessoas, do planeta.
Não basta uma pandemia para rever tudo. Mas basta uma pandemia descontrolada por causa de uma porção de insanos, incompetentes e assassinos no poder para, ao menos, nos ajudar a rever umas coisinhas: o que somos, o que temos, o que damos importância, de quem cuidamos, quem queremos ter ao nosso lado, de quem queremos distância. Minha verdade diz que talvez isso já seja um bom começo. No meu caso, acho que tem sido mais fácil praticar essas reflexões do que a respiração profunda que mencionei lá em cima.
Desconfio que esse negócio de ter dificuldade pra respirar tem a ver com minhas aulas de natação da infância. Minha rota de fuga da turma média, que te levava para enfrentar para as raias verticais da piscina do Defer, era por baixo d’água. Dia sim, dia sim, eu fugia; mergulhava e ia para a turma dos pequenos. Tinha medo das distâncias mais longas, medo do grito do professor, medo de não conseguir chegar a outra margem, de chegar por último, de chegar primeiro. Tinha medo de quase tudo, eu diria.
Então escapava. Debaixo d’água, era eu comigo mesma. Fiquei craque em prender a respiração. Na turma dos pequenos, lá estava eu com a segurança restabelecida. Nossa infância explica muita coisa. De lá para cá, passei a vida reaprendendo a respirar. Mesmo quando dói, mesmo quando sei que vou desmaiar (tenho síndrome vaso-vagal), mesmo quando a notícia é ruim. Não se pode desistir de aprender o básico. Nem de reaprender quando necessário.
Há mais de três anos, quando abri mão da carteira assinada pela primeira vez, senti ao mesmo tempo liberdade e medo. “Está por sua conta e risco” foi a frase mais desafiadora que já disse a mim mesma. Acabei tendo que voltar a pedir emprego e, por sorte e por ter bons amigos, consegui. Mas sigo tateando o universo do empreendedorismo com tantas dificuldades que é difícil listar.
Estou debaixo d´água ainda, afogada em números que não tranquilizam, no meio de uma pandemia que não acaba e com pouca fé no ser humano. Mas naquele processo de reaprendizagem constante, que inclui respirar profundamente, cuidar do espírito, olhar para o corpo com mais carinho e escrever, eu consigo me ver como uma pessoa inteira novamente.
Nunca mais vou ser fragmento, caco, pedaço jogado num canto, pedra afundando sem barulho para ninguém notar. A completude tem a ver com o abandono da ideia de perfeição, aprovação, controle. Não precisamos disso. E nem queremos. Vamos em frente mesmo com dias difíceis, com as perguntas sem respostas, com os erros e as imperfeições.
Quando você der com os olhos n’água, como eu, deixa transbordar. Depois, levanta, respira, reza, lê, escreve, reflete e se recompõe. Tem mais vida para viver.
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