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Me perdoo por me trair

A pior clausura, a prisão mais escura, a noite mais longa é a do nosso julgamento. Nós mesmos nos declaramos culpados e criamos a própria cela. Liberte-se.







Pedi à minha tia Rosa que me enviasse uma carta que ela achou nos guardados dos meus avós depois que eles morreram. Uma carta longa escrita pelo meu avô, que se chamava Mendo, para minha avó, Zuila, sua esposa e mãe de seus 11 filhos. Nela, ele pedia perdão. Por não ter correspondido às suas expectativas. Dizia que ela foi mais do que ele merecia e que seus fracassos em nada diziam respeito a ela.


Foi escrita em 1994. As palavras dão pistas de como se sentia. “Estou no fim da vida...”, dizia. Sabemos, portanto, que era um acerto de contas daqueles que só o tempo permite fazer. É quando, lá na curva, a gente para e observa a paisagem da vida com o olhar do coração. Faz mais sentido então expressar os sentimentos e as emoções do que frases prontas, rascunhadas com a razão que julgávamos ter.


“Acho que não mudei mais que o óbvio. Não tenho frustrações. Para mim, Deus me deu até hoje muito mais do que eu mereço. As minhas frustrações, se é que tenho algumas, está em não lhe proporcionar a vida que você merece”, ele escreve.


Meu avô pede perdão do jeito orgulhoso dele. É bem verdade que a carta é cheia de não-ditos, entrelinhas que, no fundo, revelam silenciosamente a dificuldade de dizer simplesmente: desculpe, queria ter sido mais, você nunca teve culpa e por aí vai. Lá no fundo, o membro do Tribunal de Contas de Fortaleza, presidente de Fortaleza Esporte Clube, industrial e comerciante, subprefeito de Parangaba se achava com alguma pequenez diante da minha avó costureira. Algo que um senhor macho do século passado jamais admitiria.


Seu currículo, que eu achei num projeto de lei que pretende homenageá-lo com o nome de um equipamento público, em nada contribui com minhas lembranças do avô que frequentava rinhas de galo, um costume da Fortaleza da época, estava sempre com os bolsos sempre cheios de bala Pipper, sentava numa roda de filhos e netos, majoritariamente feminina (dos 11 filhos, apenas dois homens), com um copinho de uísque, e soltava uns brados que fazia todos tremerem vez em quando. Minha avó passava uma certa vergonha com seu excesso de sinceridade nos supermercados ou restaurantes.


Só tenho boas lembranças dele. A melhor era a hora do barbear na longa mesa da copa da casa da Castro Monte. Um ritual diário. Ele nos chamava para pentear seus cabelos branquinhos e lisos, enquanto se barbeava. Eu e minhas irmãs fazíamos muitos penteados nele. E ele, tido como meio ranzinza, achava muita graça e adorava o cafuné.


Vovô Mendo morreu aos 88 anos de um ataque cardíaco fulminante, em 20 de abril de 2000. Minha avó viveria mais alguns anos – faleceu em junho de 2004 –, a maioria num exílio de consciência, acometida pelos transtornos do Alzheimer e da cegueira causada pelo glaucoma e por imperícia médica. Uma mulher de fala mansa, bom gosto inacreditável, acabamentos impecáveis no seu ateliê de costura, que ajudou a sustentar a família, depois do meu avô ter perdido seu cargo na época da ditadura.


Vovó era minha madrinha, segue sendo meu anjo da guarda e consigo lembrar com detalhes do quartinho dos fundos, onde separava com ela modelos nas revistas Moda Moldes e retalhos dos tecidos para as roupas das bonecas. Passei todas as férias da infância e da adolescência na casa deles, com toda sorte de paparicos feitos por eles e minhas tias maternas.


Por que demoramos a falar


Ler a carta do meu avô novamente me faz ter a compreensão de como passamos a vida acumulando sentimentos de frustração e culpa. Ele diz que a vida lhe foi generosa e que ele não tem do que reclamar. Será que algum dia eles tiveram essa conversa? Será que tiveram tempo e força para um olho no olho? Ou será que, forçados pelas circunstâncias de uma época em que ele deveria ser um provedor absoluto (e não conseguiu ser sempre) e ela uma mulher submissa e silenciosa (há controvérsias se de fato foi), não se calaram em função das obrigações e convenções?


Traímos, com nosso silêncio, a nossa vontade de pedir desculpas, de procurar alguém para aparar as arestas de relacionamentos tristes que deixamos pelo caminho. Traímos, sobretudo, a nós mesmos - nossos desejos, anseios, sonhos, expectativas de ser melhor.


Somos o nosso próprio tribunal - juiz, júri, promotor, advogado de defesa. Sou capaz de discorrer horas sobre os meus atenuantes, mas também de me condenar sem direito a uma defesa justa. Não apenas eu. Todos nós.

Viemos para esta existência com alguma missão. E, para cumpri-la, nos jogamos na vida, sujeitos a todo tipo de intempéries. À deriva, o ser humano usa o bote que aparece, o que normalmente não é bom. Convenções, educação muitas vezes que alimenta conceitos torpes, obrigações desmedidas e preconceitos, ausências de todo tipo. Vai entrando água no barco.


Tem uma frase atribuída a São Tomás de Aquino que diz assim: “Se a meta principal de um capitão fosse preservar seu barco, ele o conservaria no porto para sempre”. Pois é. Não nascemos para ficar parados observando a vida passar. E, nessa travessia, vivendo, errando, acertando, aprendendo, alguma coisa tem que chegar à margem com você.


Eu diria hoje que essa coisa é a sensação de não dever nada a ninguém e nem a si próprio. Isso não quer dizer que vamos fazer todo mundo feliz ou que estaremos completos sempre. Quer dizer apenas que devemos ser conscientes de erros e acertos; que honramos nossa história; que nos perdoamos. Só assim, assumindo nossas responsabilidades sem julgamentos sumários, conseguimos olhar para os outros com alguma empatia.


A carta de meu avô pode ser para a minha avó. Mas, antes de qualquer coisa, é também para ele. Ao escrever, ele refletiu e, me parece, fez seu acerto de contas.


“Há dias penso em lhe escrever... Preferiria dizer pessoalmente, mas pessoalmente as palavras nunca serão ditas. Sou discreto. Meus pensamentos são guardados sempre... Embora careçam de importância para os outros, pra mim têm muita importância”, diz logo na primeira folha da carta.


Era ou não conversa com ele mesmo?


Eu faço isso todos os dias. Sobretudo quando coloco o meu tempo livre apenas a serviço das obrigações, das circunstâncias, dos outros. Nenhuma hora para minha escrita? Para a meditação que me faz tanto bem? Sim, estou aprendendo ainda. Quase aos 50 anos e ainda aprendendo a me permitir momentos de autocuidado, contemplação, silêncio e paz comigo mesma.


Os nossos antepassados tendem a nos deixar lições, muito mais do qualquer outra herança. Você consegue desfiar as memórias e separar o que te serve?

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