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Atrasada, eu?

Como chegar aos 50 sem a sensação de estar sempre correndo atrás. Livrar-se do peso do passado, definir o presente como linha de chegada e saber que o futuro sempre será uma pergunta sem resposta



O relógio de mais de 100 anos, herança de uma tia-avó, ensaia suas badaladas aqui na parede de casa. Olho para ele, quase pedindo respostas. Ele mede o tempo e o tempo é o senhor que tudo sabe. Ele passa, amadurece, esclarece. É sábio o tempo. Engole palavras, gestos, atos, fatos. Ele voa. Muda certezas, filtra os sentimentos ruins, guarda lembranças. Também pode ser muito generoso. Sinto agora que ele é meu amigo.


Minha convivência com o tempo não é mais de briga. Admito sua superioridade. Me dei por vencida. Não peço que corra comigo, nem que me espere. Mesmo se assim quisesse, ele não poderia. É a natureza das coisas. O tempo vai e vou com ele. Caminhando ou arrastada. Uma hora temos de escolher como será feita essa travessia.


Rumo aos 50 anos, percebi que minha companheira era a sensação de estar sempre atrasada. Não estudei mais quando deveria; não guardei dinheiro quando podia; não acumulei mais experiências de trabalho quando ele era farto; não cuidei do corpo desde cedo; não me dediquei à escrita, minha paixão verdadeira, por muitos e muitos anos.


Com tantos questionamentos, cheguei à conclusão de que minha relação com o tempo era de atraso. Então, minha condição era de devedora e meu sentimento era de culpa. Dever (qualquer coisa: dinheiro, explicação, desculpas e tudo mais) aos outros é algo que nunca foi tranquilo para mim. Dever a mim mesma, então, era a trouxa de roupa pesando sobre a cabeça eternamente. Só queria um varal para pendurar minhas frustrações. Deixar o ego secar ao sol até esturricar. E, ainda assim, saber que posso dobrar tudo e guardar na gaveta. A vida é maleável, até quando a gente a expõe a duras condições de temperatura e pressão.


Há muito pouco tempo, imersa nessa realidade pandêmica, que me fez enxergar o pouco como muito, comecei a perceber que há dívidas impagáveis. Elas merecem ser perdoadas. A anistia irrestrita chega com um processo de autoconhecimento, autocuidado e autocompaixão. É essencial olhar para o seu, o nosso passado e conseguir enxergar o que foi de fato vivido e não o que deixou de ser.


Como uma rede de arrasto, eu puxo a pesca dos anos vividos. O que há de vir desses 49 anos? Talvez um bocado de lixo. Mas vem todo o resto também.


Eis uma minibio:

Três filhos dos 15 aos 31 anos (sempre quis filhos cedo e tive); três casamentos (isso exige coragem! Um deles, o atual, com o amor da minha vida); duas décadas numa redação de jornal, fazendo o que sempre sonhei (a maior parte editando uma revista que me dava muito prazer); mais dois empregos em assessoria (algo que desconhecia e aprendi); muitas viagens lindas (que me rendem lembranças e repertório de vida); família grande e amada (que sobrevive com uma porção de brigas aqui e ali, mas vive em harmonia); saúde, temos; dois negócios próprios (um deles que me deu muito prazer e não me deixou nenhum dívida – o food truck Se essa rua fosse minha; outro ainda sobrevivendo e me ensinando a ser forte, o Gentil Café).


Enquanto lamentava meus atrasos, estava vivendo tudo isso aí. Desconfio que não foi pouco. A gente começa a perceber que é muito injusto cobrar tanto de si próprio. Julgar a si próprio. Punir a si próprio. Quando decretamos sumariamente a nossa culpa pelo que não fizemos, estamos minimizando a importância dos nossos caminhos até aqui, do nosso aprendizado enquanto trilhávamos o caminho possível.


O caminho possível... Não foi esse, afinal, o único que achamos para seguir? A vida é uma busca por saídas. Não uma saída perfeita, com direito a estouro de champanhe e pódio na chegada. Apenas uma saída. Grande, pequena, clara, escura. Às vezes, uma fenda apertada, um buraco no chão... A gente só quer sair, ainda que ferida, ralada, cansada. Só sair e respirar.


Chegar aos 50 anos, para mim, é apenas encontrar mais uma saída. Agora, com mais tranquilidade. Sabendo que este ano não estou correndo, em desespero, procurando portas que não abrem, com cadeados sem chave e fechaduras emperradas. Vou caminhando, de mãos dadas com a história que construí, sem culpas ou arrependimentos.


Tracei muitos planos para este ano. Mas me desfiz de todos eles em poucos meses. Desisti de projetar o futuro e mudei meu propósito. Rascunhei ele com todo carinho lá atrás. Dizia assim: encontrar um caminho profissional para a minha escrita até os 50 anos. É bonito, mas não é exatamente o meu desejo.


Ainda no processo de criação de uma rotina para escrever, descobri que as palavras fazem parte de mim, mesmo quando em vez de habitar o papel ou uma tela, elas apenas passeiam aqui por dentro. Escrever ganhou outra dimensão. É alimento de outra ordem. É sustento da alma, não apenas do corpo. Não precisa necessariamente me dar dinheiro; basta que me dê paz de espírito.


Se algum dia, eu puder viver só disso, será a pescaria perfeita. Como o milagre da multiplicação. Por enquanto, meu propósito tornou-se viver o presente, praticar a escrita e entregá-la ao mundo. De novo, não é pouca coisa. Mas faz tanto sentido. Não estou correndo atrás, nem pedindo a alguém lá frente que me espere. Não estou criando justificativas para o que deixei de fazer ou estudar ou acumular ou criar. Estou apenas caminhando.


Sabe a saída fácil, iluminada, demarcada, clara? Nem sempre existirá. Mas sinto que agora estou bem equipada, com mapa, lanterna, colete à prova de balas, bote salva-vidas. Quanto mais a gente se conhece e respeita a própria história, mais pronto a gente está. Para sentir, viver, mudar de rota tantas vezes quanto for necessário.


Se eu pudesse dar um bom conselho para a pessoa que fui nesses 49 anos, seria: não pare no tempo, não o confronte, não tente abocanhá-lo feito leão faminto. Simplesmente, siga com ele e perceba a dádiva do aprendizado.

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