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O que ganhamos quando perdemos



Dia desses, meu filho Tomás me convidou para assistir a um filme. Da sua lista - sempre com filmes fora do circuito comercial - havia cinco opções. Escolhemos Perdidos em Paris, dirigido e estrelado por Fiona Gordon e Dominique Abel (Bélgica-França), lançado em 2017 no Brasil.


Ela é uma bibliotecária canadense que recebe uma carta de uma tia idosa pedindo que fosse a Paris. A partir da chegada de Fiona, ocorre uma sucessão de encontros e desencontros, envolvendo um sem-teto chamado Dom, protagonizado por Dominique, que faz par com Fiona na cinematografia do casal e na vida real.


A narrativa é singular, com humor nada previsível e coreografado como se fosse um balé. Não espere obviedade ou se decepcionará. Paris surge como coadjuvante de luxo. Terminei aos suspiros. Foi maior que o tamanho da minha expectativa. Adoro quando um filme me transborda, só não digo o porquê para não estragar a surpresa - esta sempre é melhor quando é o que é: inesperada.


Corta aqui




Abro o grupo de WhatsApp da família. "Já viram Emily em Paris?", minha irmã pergunta. “Sim”. “Sim”. “A temporada toda”. Abro o Linkedin e um post do Nizan Guanaes me diz: “Assistir a Emily em Paris é fundamental para qualquer pessoa que trabalha com marketing”. Não trabalho com marketing profissionalmente, mas assumo essa função na minha cafeteria, o Gentil Café. Uma luzinha acende. Leio os comentários do post: muitas críticas e poucos elogios. A luzinha vira um letreiro luminoso.


Então…


Já estava com Paris na cabeça por conta do filme anterior. A série também é dirigida pelo mesmo diretor de Sex in the City, o que me dá uma nostalgia boa. Também precisava parar na frente da TV para assistir a algo mais do que reprise de novela (que também adoro). E necessitava perder a resistência de ver qualquer série. Chamei minha filha, Paula, seriemaníaca: “Já vi tudo, mas vejo de novo com você”. Meus filhos sempre fazem isso por mim e adoro.


Entre uma obrigação e outra, corria para Paris, avançando com Emily em seu bobo, ingênuo e encantador propósito de vencer as dificuldades do idioma e de uma cultura tão diferente da sua - o que inclui uma aparente arrogância dos parisienses. Embarquei no seu eterno desvencilhar-se de situações constrangedoras e de desafios profissionais. E Paris estava lá, majestosa.


Corta aqui novamente


Preciso falar sobre Paris. Estive lá. Uma vez, a trabalho. Tinha acabado de assumir como editora da Revista do Correio e o meu chefe, diretor de redação, pediu que eu fosse a França em seu lugar. O convite era de um laboratório importante que desenvolvia medicamentos contra o vírus da época. Viagem de relacionamento para conhecer a sede, o sistema de saúde francês, as possibilidades de um novo tratamento.


Não falo francês, nem inglês, nem espanhol. A diretora de Comunicação do laboratório no Brasil me tranquilizou. Estaria lá, poderia traduzir tudo. Ela foi fantástica de fato. O que não me poupou de constrangimentos em série. Viajei na companhia de mais três jornalistas experientes na cobertura de saúde. Quando não dominavam o francês, eram fluentes no inglês. Desenvoltura para dar e vender - eu compraria um pouquinho de cada um se fosse possível. Já havia feito outras viagens a trabalho para o Exterior, mas aquela era diferente: um petit comité um tanto luxuoso e não turístico.


Desde o início, me senti a figura que cai no Sena com a mochila nas costas, perde dinheiro e passaporte num país estranho sem falar o idioma do lugar (spoiler básico - esta é a Fiona de Perdidos em Paris). Eu era uma perdida em Paris. Com uma diferença importante: uma perdida com cicerone e cheia de mordomias. Nada disso, porém, tirava meu desconforto de estar num lugar sem dominar a palavra - entenda-se o idioma, o assunto, o métier.


Foi pouco mais de uma semana de champanhe, vinhos fenomenais, queijos, caviar, o melhor pato que comi na vida, com direito a uma incursão em Toulouse. Mas o meu menu degustação continha insegurança e medo, um tanto indigestos. Eu sempre sonhei conhecer Paris. Os dias passavam e Paris aparecia e sumia pelas janelas da van, do hotel e dos restaurantes fabulosos.


Virei uma morta-viva, um zumbi que tentava extrair alguma palavra compreensível no meu parco repertório de frases feitas, tiradas do manual de bolso. Meus colegas, quando podiam, dispensavam a tradução simultânea contratada. Minha dificuldade parecia imperceptível. Fiz a parisiense blasé. Me afastava das rodas, como alguém dada a distrações. Não perguntava nada e sorria sutilmente, não fazia gesto que chamasse a atenção, mas meus olhos grandes faíscavam.


"Je ne parle pas français" virou meu lema da vergonha. “English?” “I’m sorry”. “Hola! Que tal?”. Não… Lembro de um anjo bom que sentou ao meu lado num café da manhã e tentou conversar, eu repeti a toada prevista. Ela riu para mim e disse numa mistura de muitas línguas: “A gente vai dar um jeito de conversar”. Falamos pausadamente, cada uma no seu idioma, buscando uma ou outra palavra em alguma outra língua. Conversamos e nos entendemos durante uma meia hora. Pela primeira vez, saí do hotel sem um embrulho no estômago.


Lembrava da minha irmã, nutricionista, enviada para um congresso técnico no Japão pelo governo brasileiro. Sem o inglês, ela contou que se trancava no banheiro a cada intervalo para não ter que conversar com ninguém. E ela é leonina, vaidosa, preparada e não é tímida.


No único dia livre da viagem a França, a pergunta que eu ansiava: o que faremos? Todos conheciam Paris na palma da mão. Fomos para Versailles. Paris ficou para trás e eu me contentei em ver a Torre Eiffel bem de longe, à noite, porém toda iluminada, do alto de um restaurante chique que talvez muitos legítimos parisienses pouco frequentem.


Perdi o caminhar com as baguetes debaixo do braço, a chance de me perder por boulevares charmosos e Paris, de entrar no Louvre. Tive o luxo de Paris sem ter Paris. Na hora de ir embora ainda deu tempo de uma circulada pela Champs-Élyseés. Comi um croissant, comprei presentes para as crianças e olhei para o Arco do Triunfo de longe como quem está prestes a acordar de um sonho.


Embarquei de volta na Classe Executiva, sentindo um alívio descomunal. Recebi da aeromoça uma taça de champanhe, sorvi num gole só. O avião decolou e eu dormi o sono dos justos. Acordei ainda no início do voo, um tanto nauseada. Vomitei na porta do banheiro toda a minha angústia acumulada e digerida à base de queijos e vinhos.


Passei tão mal que acharam um médico no avião. Com uma dose extra de dramin, dormi até quase a aterrissagem em São Paulo. Dispensei a ambulância que insistiam em chamar, prometi que sairia andando. Se há uma coisa que me coloca de pé é orgulho ferido. A propósito, meu vizinho na Executiva era um cantor bem conhecido. Vergonha pouca é bobagem.


O que ganhei quando perdi meu eixo numa viagem a trabalho? Guardei o vexame e a imensa vontade de ter Paris ao alcance nos pés, caminhar por lá como uma turista qualquer, explorando sabores baratos e cartões-postais.


Corta aqui de novo


Emily e Fiona são a ficção da vida real. A minha, a sua, a nossa vida são enredos que nos põem à prova. Às vezes das nossas próprias angústias e frustrações, das nossas falhas e faltas. O bom é que sobrevivemos.


Pessoas de coragem dificilmente recusam convites tentadores. Pessoas tímidas como eu, que convivem mais de perto com o medo, pensam em todos os corajosos quando os aceitam. Lembro de minha filha Fernanda (foto abaixo), que desembarcou sozinha em Paris também sem falar francês. Tenho uma infinidade de amigas cheias de coragem, que viajam sozinhas sem nenhum medo. Elas sempre me dizem: "Vai... aceita...". Ainda bem.


Minha jornada no empreendedorismo é, de certa forma, minha viagem de volta a Paris. É o buraco no estômago e a taça suada do melhor champanhe. É a Torre Eiffel muito distante, mas vista de um ângulo pouco previsível. É a viagem de primeira classe com um desarranjo ridículo no final. É viver em perspectiva - não com ela, não sem ela. É viver nela.


Sigo por aqui lembrando da frase que amo do clássico Casablanca, traduzida como melhor me apraz: “Sempre haverá Paris”. Que seja: o que vivemos sempre estará lá, no lugar onde plantamos a nossa história. Mesmo quando perdemos, conquistamos algo. Ora a capacidade de sobreviver a situações difíceis, ora a possibilidade de rir delas anos depois.




O melhor exemplo da minha vida sobre perdas e ganhos é minha gravidez na adolescência. Quando todos os olhares vinham em minha direção, uma menina de franja curta e barriga grande, imaginando os pulos no tempo que eu estava dando, eu nem pensava nisso. Ao contrário, pensava na imensa oportunidade de crescer com ela vida afora. Nanda me criou, me educou e me viu viver uma adolescência tardia na primeira chance. É minha tradutora oficial nas viagens em família.


Ainda não sei inglês, nem francês, nem qualquer outro idioma. Não consigo acompanhar as séries que todo mundo vê. Entrei em um negócio sem ter as ferramentas que facilitam a caminhada rumo ao empreendedorismo: dinheiro e experiência.


O que eu tenho é um olhar para isso tudo. Porque aceitar convites é ter histórias para contar. Quando vejo o Gentil Café resistindo a essa pandemia - só nós sabemos o custo - lembro da borboleta azul que voava no 6 de novembro de 2018, dia em que abrimos as portas. Lembro do raio de sol que entrava pelas frestas e do oco na barriga fazendo eco de tão grande. De novo, o balé da vida. De novo, eu dançando conforme a música.


Com essa experiência de atravessar uma pandemia a bordo de um pequeno negócio, poderia te contar que ganhei uma tendinite perversa, um refluxo matador, noites insones, olheiras e olhos inchados. Porém, não é só isso. Ganhei histórias, muitas, tensas e alegres. Afinal, "sempre haverá Paris".



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