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Meu querido financeiro

Fotos: Luís Tajes



Certo dia, um dos baristas do Gentil Café, o Franklin, veio falar comigo. Introduziu o papo assim: “Querido financeiro”... Sabe aquele emoji com olhinhos esbugalhados, querendo saltar para fora. Pois é. Fui eu, sou eu. Nem lembro ao certo o que ele queria pedir quando me chamou assim, mas o apelido pegou. E eu virei o “Querido Financeiro” do Gentil Café, para autorizar qualquer despesa fora da curva – ou atualmente, mesmo as que são previstas e previsíveis.


Desde pequena, sou das letras; não dos números. Mas me aproximei deles porque tive um incrível professor (o França, do Sigma) que iniciava as aulas com as biografias dos cientistas. De tanto ouvir sobre Pitágoras, Galileu e tantos outros, me afeiçoei ao ofício deles. Virei monitora de matemática. Fui excelente aluna de exatas. Amor mesmo, no entanto, eu devotava às letras. Já no jornalismo, tinha pânico da cobertura econômica, gostava de ouvir e contar histórias. Até hoje, tenho medo do Excel e o meu grande aliado é o Ctrl Z, porque insisto em desfazer as tabelas e as fórmulas que um pessoal bem bacana deixou prontas para mim.


Como alguém assim pode ser responsável pelas contas de uma empresa? Se há algo a meu favor é que sempre fui organizada do ponto de vista financeiro. Minha conta pessoal era um brinco reluzente e minha agenda guardava traços de canetas fluorescentes em série, iluminando cada item do orçamento mensal honrado com o suor do meu trabalho. Eu sempre gostei disso e acabei virando naturalmente a pessoa das contas dos dois negócios em que me meti.


Aos poucos, fui criando intimidade com termos contábeis e começando a entender melhor os pedidos do escritório de contabilidade. Nomes de impostos, alíquotas e afins. É fácil traduzir hoje coisas como NCM, CFOP, Simples. Também já fiquei craque em renovar certificado digital, tirar relatórios de notas fiscais a cada mês, escanear um mundo de boletos e comprovantes.


O que ninguém te ensina é como manter a sanidade mental nos tempos de crise financeira. Como administrar a sensação de fracasso quando o dinheiro não chega para pagar funcionários, fornecedores, impostos, contas de consumo, aluguel? Como equacionar o drama entre a necessidade de investimento e o pagamento de tantas obrigações? Ainda não vivi o prazer de colorir com caneta fluorescente todas as contas de uma empresa no mesmo mês.


Entre o fechamento de um negócio e uma pandemia no meio do caminho de outro, vivo de negociações delicadas. Com bancos, fornecedores, credores, enfim. Mas a pior delas é comigo mesmo. Diariamente, nos intervalos do meu trabalho como assessora de imprensa, entro nas contas bancárias e me pergunto: o que pagar hoje? Quem sai na frente; quem fica para trás?


Como os médicos de UTI, que decidem a quem salvar, todos os dias escolho quem vai receber os parcos respiradores. Essa missão não parece de Deus, mas é. E preciso me contentar com o legado de aprendizagem que ela me proporciona. Agradeço imensamente a paciência das pessoas que trabalham conosco e também de muitos fornecedores (te digo: quanto menores eles são, mais generosos se mostram).


Antes que me perguntem sobre as fantásticas medidas para salvar microempresas da crise em meio à pandemia, já te respondo: obrigada pelo enorme endividamento adiado, senhores bancos e governos. Quem teve acesso às medidas, e foram muito poucos, só ganhou um futuro bem incerto. Anistia é para os grandes, para quem deve milhões e bilhões; aos pequenos, reserva-se uma ajuda pífia e um discurso mentiroso.

A frustração de uma falência: matar a ideia é pior que matar o negócio





Mas é preciso voltar a fita um pouco. Rebobinar a trajetória para contar sobre o meu início como PJ. Quando saí da redação do jornal onde trabalhei desde que me formei, por 23 anos, peguei minha indenização e procurei uma consultoria financeira para dividir o dinheiro entre o meu sustento, o investimento em algum negócio e o pagamento de dívidas – a do apartamento era a maior delas. A consultoria fez o trabalho certinho, mas o combinado não vingou por muito tempo.


Empreendedores iniciantes cometem todos os erros possíveis, apesar dos sonoros alertas de consultores e mentores acostumados a antever falências e afins. O primeiro negócio foi o foodtruck Se essa rua fosse minha, em sociedade com meu marido, Luís Tajes. A ideia era contar histórias de rua e vender pão com linguiça artesanal. Seria simples – se a gente quiser fazer algo simples.


Além de querer inovar, fazer diferente, novatos no ramo são também exímios controladores – querem fazer tudo e acham que realmente dão conta de tudo. Ficamos um ano e dois meses na rua. Gastamos mais do que prevíamos, acumulamos todas as fases de um trabalho fisicamente exaustivo e saímos exauridos, mas sem dívida nenhuma – essa parte do plano deu certíssimo.


Restou um imenso sentimento de frustração: o da falência, morte por cansaço e inanição. A gente se apaixona pela ideia e matá-la dentro da gente não é um processo rápido. O tempo dignifica a experiência. Aos poucos, a dor cessa e restam as pessoas que conhecemos e as lembranças doces que acumulamos na jornada. Foi bonito também, apesar das sequelas. Os calos nas mãos se foram, ganhamos alguns quilos antes perdidos e até sentimos saudades das ruas de vez em quando.

O Gentil Café já tem uma boa história pra contar




Em paralelo ao food truck, abri uma cafeteria com as minhas irmãs, Patrícia e Michelle. O Gentil Café, Pausa & Prosa já nasceu como um projeto mais ambicioso, pensado nos mínimos detalhes, para reproduzir no comércio o exemplo de nossos pais como anfitriões. Ali, investimos num projeto arquitetônico primoroso, numa cozinha de alta qualidade, saudável, sem ultraprocessados, com comidas “de verdade” servidas em louças feitas à mão e cafés especiais.


Um espaço aberto à cultura local, jazz nas quartas, feiras para artesãos locais e lançamentos de livros. Recebemos muitos e muitos amigos, alguns de infância, que não víamos há décadas. Abrimos para casamento e testemunhamos pedidos de noivado. Ouvimos, com emoção, relatos como a de uma mulher que me disse: “Enterrei minha mãe e vim pra cá. Aqui me sinto em casa, posso ficar em paz”. Guardei para sempre.


Sim, o Gentil Café virou a extensão da casa dos nossos pais, Sara e Antônio, que deram e ainda dão todo apoio. Mamãe faz bolos na cozinha. Papai faz palavras-cruzadas no balcão e ajuda financeiramente mais do que pode. Nossa cafeteria passou a acolher a vontade de estar sozinho, de trabalhar saboreando um café, de reunir os amigos, de driblar a solidão tomando um uísque ou café enquanto conversa com o barista, de fazer crochê e tricô em grupo, de aprender jardinagem, de discutir saúde mental, de falar de moda sem preconceito. Em quase dois anos, foram muitos projetos, programas e encontros além do trivial.

O simples, mais uma vez, não estava nos nossos planos. Colhemos alegrias em série, um orgulho que mal cabe no peito. Mas nunca fomos empreendedoras e nem tínhamos dinheiro próprio para investir. O pouco que tínhamos foi consumido antes de abrir, com os projetos e aluguéis. Quando o financiamento saiu, veio menos, de forma que o valor previsto para capital de giro foi consumido ainda na obra, que demorou mais do que o razoável e acumulou imprevistos.


Com o início de funcionamento, sem história para contar, os fornecedores não davam prazo e os bancos não autorizavam novos recursos. Os empréstimos tiveram de ser como pessoa física; todos os extras, como férias e décimos terceiros dos nossos empregos mantidos, seguiam o caminho natural: pagar dívidas do negócio.

Ainda assim, nosso negócio prosperou. Ganhou visibilidade e clientes cativos. Até prêmio revelação. Começamos a nos profissionalizar, contratamos um escritório para gerir os pagamentos, renegociar taxas e ajudar a traçar estratégias para faturamentos melhores.


Dividimos nossas funções e tarefas. Minhas irmãs são responsáveis pela gerência e RH (Michelle), fornecedores, compras e mercado (Patrícia). Além do financeiro, assumi desde o início o marketing, essencial para ser conhecido e impulsionar vendas. Afogada em números, eu faço o que posso, mas não sou especialista. Estou aprendendo e conto com a ajuda maravilhosa do meu marido, fotógrafo responsável pelas redes do Gentil Café.


Nas redes, falo com o coração, distante das regras mais difundidas da produção de conteúdo. Confesso que desprezo os algoritmos, o que pode parecer um tiro no pé, mas fico feliz pela audiência qualificada e orgânica que já conquistamos. Sigo estudando para fazer melhor.


Uma pandemia, uma pausa, uma resistência...


Eu e minhas irmãs fomos pegas pela pandemia com bolsos vazios. Redirecionar um negócio feito para receber pessoas para o delivery é um esforço tão hercúleo quanto transformar uma comida artesanal em um quase fast-food – para nós, não vale a pena ganhar no volume. Varamos dias fazendo bolo na cozinha da minha mãe, renegociando aluguéis e contas que se acumularam. Não demitimos e assumimos a função até de entregadores. Recebemos grande ajuda em forma de compra antecipada e louvamos a paciência de fornecedores e funcionários, que esperaram para receber.


Abrimos mão de coisas importantes. A consultoria financeira, por exemplo. Mais do que isso, assumimos os empréstimos do café feitos nas nossas contas pessoais e raspamos os cofres da família inteira – pai, filhos e companheiros. Minha mãe transformou a cozinha de sua casa numa fábrica de bolos e trabalhou além do razoável para nos ajudar enquanto o café permaneceu fechado. E continua trabalhando na cozinha do café após a reabertura.


O tempo ficou escasso. Fazemos um curso atrás do outro, a grande maioria gratuitos; vasculhamos redes à procura de bons exemplos. Reduzimos horários; mudamos cardápios. Alternamos entre o ânimo e o desânimo e cada uma de nós tem um jeito próprio de lidar com as alfinetadas diárias à nossa paz de espírito. Investir é uma possibilidade negada pelos bancos. Alguns funcionários preferiram sair, dando vazão aos seus desejos de outras oportunidades.


Incrivelmente, a pandemia tem seu lado bom. Ela nos tira (a todos) da zona de conforto. Diria mesmo que trocamos o sofá quentinho pelo banco de madeira. Diariamente, repensamos o negócio. Semanalmente, minha irmã Patrícia se reúne com outras mulheres empreendedoras, um movimento importante, de amparo mútuo e busca de soluções e ideias.


Não há um só dia em que não apareça um problema novo. Resolvemos um a um, minando a ansiedade que nos convida a pensar no futuro. Negócio é ação, é teste, é o agora, o presente. E é também presença. É o que tem pra hoje. Reli recentemente O Velho e o Mar, obra sublime de Hemingway. A certa altura, o velho diz: “Agora não há tempo para pensar o que você não tem. Pense no que pode fazer com o que tem”. No fim, o que vem lá na frente não é o mais importante.


A cada dia que a cafeteria acende suas luzes ao fim da tarde é a despedida de mais um dia de combate. Agradecemos pelo alvorescer e por abrir as portas basculantes no dia seguinte com o espírito renovado, ciente das responsabilidades com toda a cadeia produtiva que a nossa microempresa ajuda a manter.

O querido financeiro tornou-se uma persona maldita, um alterego angustiado que duela com meu lado criativo – este com a missão de vencer sempre. Percebi que não sou de Humanas, sou de humanidades e, sobretudo, de irmandades. Dou as mãos diariamente às minhas irmãs nessa caminhada empreendedora, certa de que, apesar das discordâncias e dos desafios de um negócio familiar, temos o mesmo objetivo: sobreviver, sustentar, crescer, honrar o que criamos e o nosso nome, Gentil.


Pela experiência adquirida, já temos nossa recompensa. No reino das pessoas jurídicas, a palavra vitória não está na largada, nem na chegada. Está no processo. Seguimos.

Trilha sonora do post:

As playlists do café e do food truck.

Gentil café, pausa & prosa (JAZZ)

Gentil café, pausa & prosa (MPB)

Gentil café, pausa & prosa (para ouvir na paz)

Se essa rua fosse minha

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