A minha pré-história com as palavras
Folheio o livro Tudo é Rio, de Carla Madeira. Há pouco mais de um mês, cheguei à outra margem daquele texto. Foi como uma correnteza. Uma travessia de poucos dias, mal deu tempo de respirar. Ao final, retomei o fôlego e suspirei.
Volto ao capítulo 5 e releio em voz alta: “E o silêncio, com sua vocação de fermento, engordava toda sorte de devaneio. Como aquele amor virou dor? Ninguém sabia explicar, mas respeitavam a tristeza dessa alquimia, o destino não aceita zombarias. Dalva passava, e as putas sonhavam.”
As palavras vão e voltam. Afogam e, em seguida, libertam suas intenções. “O silêncio, com sua vocação de fermento...” Fica aquela vontade de ter parido essa frase. Mas é bom saber que agora ela mora dentro de mim. Um livro de escrita forte e arrebatadora sempre é um hóspede bem-vindo.
Neste momento, a prosa de Carla Madeira divide minhas prateleiras internas com Manoel de Barros, poeta que convidei para uma longa temporada desde que me mudei para minha deliciosa casa da árvore. Viciei na sua forma de ver e de dizer: “Todas as coisas cujos valores podem ser disputados no cuspe à distância servem para poesia” (estrofe de Matéria de Poesia).
Costumo marcar páginas, sublinhar trechos de livros. De vez em quando, abro a esmo e leio o que foi marcado. Creio que assim recebo recados amorosos. O que me marcou quando eu li? Por quê? Adoro investigar meu passado com as folhas impressas. Na maioria das vezes, marco simplesmente porque amei a forma como o autor escreveu, descreveu, dançou com as palavras, tratou-as com respeito e deferência, buscando pares perfeitos e ritmos certos para elas. Com Tudo é Rio, deixei o lápis de lado ou ia rabiscar o livro inteiro. Vou ler de novo para ver se consigo acomodar tanta boniteza.
Não sou só eu que converso com o papel
Quando eu conheci a minha sogra, dona Dora (foto), algo me chamou especialmente a atenção. Além da voz forte, da conversa animada e da postura positiva perante a vida, o que me intrigou foram palavras que ela não disse, mas escreveu nas pontas das páginas de um livro que me mostrou. Eu folheava as páginas e encontrava escritos em lápis. Ela completava o autor com lembranças de sua própria vida, algumas com a intimidade de quem conhecia a história narrada.
Eu me lembro de ter comentado com meu marido: “Sua mãe conversa com os livros”. Algo que minha cunhada, Kika, já observara. Aos 88 anos, dona Dora conserva o hábito da leitura. Na época que eu a conheci, muitos dos articulistas e cronistas da Zero Hora (ela é gaúcha) eram conhecidos de lida, de vista ou de vida mesmo.
Ela foi mulher de um grande jornalista, Tabajara Tajes, que legou aos leitores de sua época um texto precioso. Dona Dora não viveu com ele longos anos, mas algumas das matérias permaneciam nos guardados dela - para minha infinita sorte. Título de uma delas: “Romeu e Julieta em palco de cemitério – O impressionante drama de dois jovens na cidade gaúcha de Cachoeira do Sul. O amor proibido os levou a viverem 10 meses como feras e sete meses entre dois túmulos, para um final de toque melancólico” (publicada em O Cruzeiro, em 1959). Ah... que história para ser contada, hein?!
Uma das minhas leituras favoritas, desde a faculdade, são matérias jornalistas, especialmente perfis, e grandes e bem contadas histórias policiais. Mas costumo dizer que leio até bula de remédio se for bem escrita. Amava e ainda amo os cronistas de jornal.
Brigava muito por espaço com meus editores no jornal e contra a máxima que insistiam em repetir para mim: “Ninguém mais lê matéria desse tamanho”. Sei que páginas impressas valem ouro, mas sei também que um bom texto te conduz com cuidado e emoção do começo até o fim. Linhas não importam por si só, desde que uma leve a outra e outra e outra. Melhor ainda se o ponto final te deixar órfão para sempre.
Existe um vazio na sua biblioteca interior? Na minha, sim
Minha relação com os livros é de ausências sentidas. Tenho certo deficit de leitura. Li pouco; leio pouco. Para o tamanho do meu gosto. Listas de clássicos e uma extensa bibliografia contemporânea não lidas. E também uma relação longa de abandono – quando não me pega, sinto muito, pode ser uma obra-prima, aquele livro que todo mundo precisa ler, que eu deixo ali de lado, morando na minha expectativa - um dia quem sabe...
Apaixonado por livros, já ouvi meu filho Tomás declarar para irmã: “Os livros me salvaram”. Diante do abismo de superficialidade que o mundo virtual coloca na ponta dos nossos pés, a vida para ele podia ser, no mínimo, limitada sem a companhia das grandes obras literárias, incluindo-se aí muitos da história da humanidade. É preciso dizer que Tomás herdou a leitura compulsiva do pai e não da mãe. É uma alegria ver que meus três filhos estão sempre com um livro na mão (ou no tablet).
Recentemente, Tomás colocou um certo prazo de validade para alguns livros. Se não ler até determinada data, vai para doação. É uma forma de fazer circular a palavra e, ao mesmo tempo, de botar freio na ansiedade de ver pilhas de livros que desafiam nosso tempo. Tá certo ele. Eu mesma doei um monte sem ler – não sem algum remorso.
Guardo alguns bem amados. Tenho uma edição ilustrada e infantil de O Pequeno Príncipe, porque me dá alegria. Uma edição de bolso de Meu Pé de Laranja Lima, porque foi o primeiro livro que me fez chorar – não é todo dia que um menino tem como melhores amigos uma árvore e um senhor solitário. Ficções do Interlúdio, de Fernando Pessoa, porque, desde a adolescência, sou amante de Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos sem nenhuma culpa por ser tão infiel.
Na infância e parte da adolescência, minhas leituras eram as revistinhas da Luluzinha, as Sabrinas, Júlias e Biancas (que eu roubava das tias para ler escondido) e os livros exigidos pela escola. Maravilha que eles pediam os clássicos. Graças aos professores, tenho Érico Veríssimo, Jorge Amado, José de Alencar, Machado de Assis e tantos outros guardados em mim. Nunca, nunca esqueci a dedicatória de Memórias Póstumas de Brás Cubas: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas Memórias Póstumas”. Considero uma obra-prima.
O que vem antes das palavras
Imagino que todos os que são apaixonados pela escrita tenham uma pré-história com ela. O que, afinal, existia antes de escrever? Chorar, comer, brincar, amar? Os livros que lemos, as histórias que ouvimos? O falar e o ouvir simplesmente? A observação atenta? O silêncio, a timidez? A cantada no pé do ouvido, o bilhetinho deixado no para-brisa do carro, os “pensamentos” na agenda? As letras de música que a gente canta em voz alta ou escreve no caderno (eu tinha essa mania na adolescência)? Uma palavra bem dita ou bem escrita transforma tudo. Tudo mesmo. Para o bem e para o mal.
Minha mãe não é do tipo que conversa com filhos na barriga. Mas fico imaginando que, sim, de alguma forma ela me alimentou de palavras. Uma pessoa muito querida, meu concunhado Luiz, me disse que a escrita é um dom. Gosto de imaginar que fui agraciada e escrever pode ser uma forma de retribuir. Já pensou: um sopro de letras vindo de Deus? Que sorte a minha!
Quando penso em fazer tatuagem, o desenho que me vem à mente é do genoma humano todo sequenciado com letrinhas. Para mim, é assim. Celular, orgânico, correndo nas veias. E vem com sangue, suor e lágrimas. Por isso, muitas vezes é tão difícil. Por isso, por tantas vezes, estive em guerra com o papel. Tirar as palavras de dentro pode ser um tanto dolorido. Trazê-las de volta, ainda mais.
Quando me separei do meu primeiro marido, pedi de volta todas as cartas e os cartões que eu lhe enviara ao longo dos anos. Meu desejo era engolir cada palavra de volta. As boas e as ruins. Imaginava que um dia, após digeridas, elas ajudariam a nutrir a memória de um primeiro amor, adicionando à idealização besta um bocado de realidade, nua e crua, respeitando o espaço de tempo que transforma qualquer amor e qualquer dor em experiência de vida. Fiz bem.
A primeira coisa minimamente literária que me lembro de ter escrito foi uma poesia para o Dia das Mães. Tinha 8 anos. De lá para cá, nunca mais me desapeguei da palavra, embora tenha tido épocas de vazios profundos, quando os textos eram rascunhados nas nuvens do pensamento. Tenho guardado um velho caderno de poesias, que são meus escritos mais antigos, letras de música. Já faz uns bons 10 anos que não visito mais aquelas páginas. Qualquer dia...
Também sempre escrevi cartas. Para amigas, principalmente. Agora na pandemia, me correspondi especialmente com uma delas, que vive um luto difícil, a perda repentina do pai. Além de me ajudar a voltar com a prática da escrita, as cartas são, para mim, o jeito mais carinhoso e direto de se comunicar.
Falamos sobre chegadas e partidas; morte e vida; pais e filhos; sobre as coisas sem sentido que guardamos e acumulamos ao longo da vida; sobre autoflagelo; sobre conversas, memórias e viagens. Falamos sobretudo sobre a necessidade de, a essa altura da vida, rever comportamentos, teorias e opiniões. Uma troca muito boa.
Uma pré-história importante para minha nova temporada com as palavras. Aos poucos, estou escrevendo um novo capítulo da minha escrita. Gostaria de ter mais tempo para me dedicar e avançar como uma corredeira, bem ligeiro em direção ao meu propósito de chegar aos 50 anos vivendo de escrever. Mas é preciso respeitar o tempo das coisas. E quando me pego carregando um peso excessivo de cobrança nas costas, eu visito as palavras que escrevi (essas abaixo foram tiradas de uma das cartas que escrevi para minha amiga).
“Amiga, a gente vai se apegando ao que não deve ao longo de nossa existência. Pessoas, lugares, malas de roupas, dinheiro, emprego... Nós nos apegamos à ideia do que somos e às vezes nem nos conhecemos direito. Quantas vezes já me peguei deixando de gostar do que achava que amava? Quantas coisas guardadas como importantes joguei fora sem dó nem piedade depois de um tempo? Quantas pessoas que já foram presentes hoje não significam nada? As pessoas que sobrevivem no nosso coração são de fato muito especiais, porque vencem nossas inconstâncias, abusos, mudanças e críticas... Devíamos ser mais generosos conosco para não sofrermos tanto. Entender que tudo é transitório e que alguma dor é necessária para enxergar toda a beleza do presente que nos foi dado: a vida. Faz parte, precisa fazer parte. Precisamos de autocompaixão e de autocuidado. Eu te pergunto: o que fez por você mesmo hoje? Qual seria sua vontade hoje?”.
Talvez um dia o papel contemple uma boa série histórica das minhas vontades, intenções, desejos, acertos e erros. Capaz de trazer informações seguras e confiáveis do que fui e me tornei ao longo dos anos. Para quê? Para quem? Não é exatamente o que importa. Quando se “é” a própria escrita, viver é também escrever. De novo, é o processo, a viagem e talvez um papel amarelado numa caixa de afetos guardado por alguém.
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