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A Casa da Árvore




Este texto é para você que não consegue parar nas lives, não importa o quão interessantes sejam; que planeja no Trello e ignora as mensagens de alerta; escreve na agenda e não abre; organiza post its em linhas simétricas e faixas coloridas como quadros na parede. Arruma gavetas e abre espaços - para entulhá-los em seguida.


Este texto é para você que entende todos os benefícios da meditação, estuda, lê a respeito e simplesmente não consegue encontrar espaço dentro de si próprio para sustentar a prática. Eu não desisto de tentar. Também é para você que acorda rezando para Nossa Senhora, acende velas aos seus orixás, queima o incenso e acredita mesmo no conceito de impermanência do Buda. Aos poucos, vou aceitando a minha forma de crer no Divino, aquele que não tem nome, nem forma, mas que me protege, nutre e contenta.


Este texto é para você que faz muito, pensa muito, busca muito. E ainda assim acha que tudo o que faz é pouco, porque lá no fundo entende que o necessário nem sempre é o essencial. Nossos terapeutas dirão ou diriam que, na verdade, a nossa morada tem uma plaquinha na porta e nela está escrito ansiedade. E que é preciso mudar-se bem rapidinho.


Sou uma casa; você é uma casa. A gente abriga pessoas, objetos, lembranças, sonhos, frustrações, sentimentos bons e outros nem tanto. Sobretudo acolhe expectativas, as grandes vilãs da existência e da paz interior. Chega uma hora em que é preciso deixar uma grande lufada de ar destelhar nosso modo de ser e de viver.





No dia 26 de agosto, um vento forte destelhou de vez minha casa. Eu mudei e, nesta data, mudei também de endereço. Um processo que começou aqui dentro do peito precisava se desenrolar em outro lugar. E assim foi. Na verdade, assim fomos.


Eu e minha família trocamos o apartamento no mezanino, uma laje charmosa que construímos com muito amor e onde vivemos uma boa década, por uma casa em um condomínio – a que chamamos de Casa na Árvore. Deixamos um lugar confortável, urbano, perto do trabalho, da escola e de amigos. Deixamos também alguns anos de prestações a vencer. O apê diferentão já não cabia no bolso, mas a gente também já não cabia nele.


A quarentena e o confinamento ajudaram a perceber que havia paredes demais, apesar do nosso jardim particular com passarinhos que chegavam logo de manhã e árvores frutíferas plantadas em muitos vasos. Trouxemos na bagagem todos os momentos lindos que vivemos lá. Sempre gostei de mudar e sempre soube que carregamos todas as nossas casas naquele lugar chamado memória afetiva, que nunca será destelhado e que nunca nos desabriga.


A nossa Casa da Árvore chegou depois de umas 30 visitas a outros imóveis. Conciliar gostos de marido, mulher, filha adolescente e filho jovem adulto não é fácil, mesmo quando a maioria converge. Venceu a maioria e a Paulinha ainda sente os efeitos da mudança – mas já aceita com certa tranquilidade e começa a conviver de forma mais amistosa com os insetos de uma roça.





Por que esta e não outra?


Porque a nova casa conversa com nossas plantas, nossos móveis antigos, nosso estilo e principalmente com um novo modo de viver, que já nos habitava antes mesmo da mudança. Menos concreto, mais verde. Menos área construída (embora nosso plano seja aumentar um pouquinho), mais cerrado. Mais barulho de bicho do que de gente.


Nossa casa tem base de alvenaria na parte mais inclinada no terreno, mas o principal é madeira e vidros, muitos, por onde entra luz e verde em todo canto. Meu quarto não tem cortina e nem sinto falta. Acordo cedinho e ando descalça no chão de cimento queimado, nem gelado, nem quente, na medida para um corpo que mede meio termo. Passo café olhando o verde e com frequência vejo um dos gatos que nos visitam espreguiçando na porta de entrada.


Abro a porta que dá para a varanda externa com churrasqueira e fogão a lenha e sento em uma das cadeiras azuis com a xícara de café fumegante, onde batem os primeiros raios de sol da manhã, ainda com aquele frescor que só as manhãs têm. Dali, observo a revoada de pássaros, uma festa para as lentes do meu marido fotógrafo, Luís Tajes. Ouço os galos cantarem e o latido rouco do cachorro do vizinho. Ouço uma voz aqui dentro, que reverbera um eco de paz interior. Achei meu canto.


De todas as casas que vivi


Minha casa abre portas para outras memórias: das casas que convivi – a chácara do meu pai na área rural de Planaltina de Goiás e as casas da minha infância, das minhas avós em Fortaleza e da minha tia Bibi, e da casa das minhas tias-avós, chamadas carinhosamente de Dedeia e Didida, dois anjos bons que passaram a vida dedicada ao outro, às causas religiosas e a ajudar a família numerosa dos meus avós maternos.


Todas essas casas moram no meu coração e guardo delas muito além das lembranças. Lembro do quartinho de costura da casa da Padre Valdivino, onde minha avó materna, Zuila, fazia roupas para nossas bonecas com retalhos de tecido que sobravam das roupas das madames que ela atendia no ateliê.


Lembro das festas das bonecas, de comer madalenas quentinhas e castanhas de caju queimadas em panelinhas de barro na fogueirinha improvisada no quintal. E lembro das minhas tias (8 ao todo) nos enchendo de mimo, borrachas cheirosas, lápis coloridos, balas pipper, passeios na praia, neutrox rosa no cabelo e lábios repletos de Hipoglós para sobreviver ao sol quente.


Lembro da minha avó paterna subindo nas goiabeiras, colhendo atas e cajaranas na casa de esquina da rua José Lourenço. Lembro de adentrar o quarto das “empregadas”, onde havia um búzio imenso, que Nazaré e Joaninha deixavam a gente encostar o ouvido para ouvir o barulho do mar. São tantas lembranças...


A casa da Dedeia e da Didida é um capítulo à parte, reservado ao mistério. No centro de Fortaleza, na frente do Cine Art, onde assisti aos filmes Noviça Rebelde e Annie. Ali, onde me enchia de doces do baleiro, e me emocionava com um cinema maravilhoso. Nas férias, almoçávamos aos sábados na casa delas e confesso que a galinha à cabidela não me apetecia, mas a casa... Ah, a casa...


A varanda-pátio aberta para um jardim-labirinto, que alternava cortinas de verde com bancos de cimento. O pé direito altíssimo, o chão de ladrilhos e as portas duplas que se abriam para os quartos grandes e amplos e cheios de imagens de santos. Dedeia e Didida eram dois seres de luz forte e que viveram para ajudar o próximo. Alguns a chamariam de beatas. Eu as vejo como anjos. Vez por outra, Didida tocava órgão para a roda de tias tagarelantes, uma força feminina que ainda hoje chora, ri, briga, faz tudo juntas e continuam a perpetuar uma memória afetiva linda que eu trago comigo.


Na vida da gente, às vezes falta chão; noutras, falta teto. As paredes apoiam nossas costas cansadas. E os quadros de post-its e as nossas agendas guardam tarefas diárias e compromissos a cumprir. Tudo pode ser apoio, meta, plano. Mas só a nossa vivência é o recosto necessário para sustentar uma história que já carregamos e os planos que ainda temos.


Não estou descansando na Casa da Árvore, estou repousando, como numa sesta, dos imensos desafios que tenho enfrentado nos últimos tempos. Tem sido um alento e o vento que sopra agora é o da esperança. Não temos guarda-roupa, há caixas ainda fechadas, mas são apenas objetos e roupas que talvez ainda não tenham sentido quando as abrir. Já estranho os saltos que não sejam grandiosos como o próximo que pretendo dar: viver da minha escrita.

Trilha sonora deste post:

Playlist Músicas para escrever – de Ana Holanda

Podcast 50 Crises – Cris Guerra

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