O outro parto
Eu havia decidido fingir que ela só faria mais uma viagem a trabalho ou de férias. Seria uma daquelas ausências temporárias que se prolongam um pouco mesmo quando moramos na mesma cidade. Afinal, continuaríamos com nossas conversas às vezes monossilábicas e com intermináveis delays via WhattsApp. Mas ela não vem mais almoçar às quintas nem estar perto todos os domingos. Não vem mais trazer suas roupas para lavar, nem me surpreender com um convite inesperado para tomar um vinho, nem se convidar para comer um churrasquinho ou um ceviche – e era tão bom isso. Minha filha mudou-se de cidade e eu havia mesmo decidido a não me lamentar nem um segundo por isso. Mas lamento – fazer o quê?
Ela sempre foi apegada à família, sobretudo aos avós, e sou testemunha que resistiu o quanto pôde a uma mudança de cidade. Mas os anos passam, a vida convida, o trabalho pressiona e nós cedemos aos apelos. Faz parte. Sempre dei força. Mas quando chegou a hora, eu esmoreci. Sem dizer palavra, contendo o pranto às escondidas e evitando qualquer despedida, recolhi em algum lugar, que acredito seja o ventre, a dor da partida. Posso dizer que é um parto às avessas, quando você sente um íntimo desejo de trazer o filho de volta para dentro. Não é mais o ímpeto da expulsão, de lançá-lo ao universo extrauterino, fora de suas paredes corporais. O desejo é trazer de volta.
As pessoas gostam de dizer que criam filho para o mundo. Desconfio que não seja verdade, ainda que seja uma linda intenção. Normalmente, a gente nem pensa se está ninando, ensinando, educando, cuidando, criando para esse ou aquele fim. Apenas seguimos o curso, alguns com mais competência e responsabilidade que outros - é fato. Temos filhos porque simplesmente não há nenhuma outra experiência terrena que se iguale a esta. Porque é lindo vê-los crescer. Porque é emocionante assistir ao espetáculo que é um ser humano em formação, aprendendo a dar passos, a pronunciar palavras, a se olhar no espelho. É lindo ver a inocência deles e, depois, o crescimento e a maturação. Temos filhos porque é o amor maior que podemos experimentar. Porque isso nos deixa plenos e nos faz felizes – apesar de todas as dificuldades, dúvidas, angústias, tensões.
Minha filha veio tão cedo na minha vida que tenho dificuldades para dizer quem criou quem. Acho mesmo que ela fez de mim outra pessoa, acabou por me conduzir pelos caminhos, enquanto eu tropeçava por aí tentando ser alguém além de mãe. Ser mãe aos 15 anos é uma vivência difícil de se descrever. Não posso dizer que passei por maus bocados, já que tive apoio incondicional das famílias envolvidas. Mas a pressa de suprir alguém te leva a alguns deficits. Ou se é mãe ou se é adolescente, por exemplo. Pulei a adolescência, mas a vivi depois. Sem traumas, nem prejuízos emocionais. Corri atrás de qualquer falta e colhi maturidade, responsabilidade, vontade de acertar logo cedo e certeza de que já tinha o que de melhor a vida poderia me ofertar.
Eis que antes de fazer um ano da minha mudança radical de vida, abandonando o emprego numa redação de jornal para me aventurar a bordo de um food truck e de outros projetos solos no jornalismo, ela me deu a notícia que estava de partida. Nem chegou a ser surpresa, já que a transferência era questão de tempo. Ela é responsável, gosta do que faz, quer crescer profissionalmente. Já anda com as próprias pernas há um tempo; já havia inclusive saído de casa. Tudo isso torna tão natural uma mudança de cidade...
Mas não é... Há uma distância agora. Há um voo ou muitas horas de carro. Há chegadas e partidas que você não controla e perigos que você não vê. Há possibilidades de uma distância ainda mais distante. E há um drama materno descomunal nisso tudo aí, como você pode ver. Na minha família, as pessoas são meio dependentes de coisas prosaicas, como reuniões dominicais, revéillon em família, etc. Não à toa ela tatuou no braço as coordenadas da casa dos avós, seu reino que nunca será distante. Há uma saudade elevada à potência do apego e dos costumes.
Há um jeito de lidar com isso? Deve haver, mas, como em matéria de maternidade, tudo é pessoal e intransferível, apesar dos discursos em comum, fico com o tempo porque ele, sim, sempre te dá respostas. Por enquanto, admiro a coragem dela de mudar, de largar o conhecido e trocá-lo por desafio. Admiro a força de abrir portas, deixando frestas para escapar aquela dorzinha sadia.
Fico feliz que ela seja forte para fazer suas escolhas. E que eu a tenha criado para que se permita ousadias, lances arriscados e tenha dentro de si a liberdade para alçar voo. Sou grata por ela. E sou ainda mais grata por poder sobreviver à falta que ela me faz. Basta saber que em qualquer lugar onde esteja ela levou consigo as memórias de uma convivência harmoniosa, alegre e cheia de amor. Volte maior, meu amor.
Trilha sonora desse post
Trevo (Anavitória)
Toda menina baiana (Gil)
Solidão (Alceu Valença)
Chame gente (Moraes Moreira)
Corcovado (com Stan Getz e João Gilberto)
Here comes the sun (com Nina Simone)