"Fizeste-nos chorar sem nos afligir"
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Também recordarei como fecunda a tua influência, o amor, na salada e parece que o céu contribui dando-te fina forma de granizo a celebrar a tua claridade picada sobre os hemisférios de um tomate. mas ao alcance das mãos do povo regada com azeite polvilhada com um pouco de sal, matas a fome do jornaleiro no seu duro caminho. estrela dos pobres, fada madrinha envolvida em delicado papel, sais do chão eterna, intacta, pura como semente de um astro e ao cortar-te a faca na cozinha sobe a única lágrima sem pena. Fizeste-nos chorar sem nos afligir..."
(Do poema Ode a cebola, de Pablo Neruda)
Minha relação com a cozinha nunca foi amistosa. Mas minha relação com comida sempre foi de uma intimidade que convém a uma filha de nordestino - mesa farta, posta e variada. Se cozinhar é um verbo que não conjugo de cor e salteado, comer está no topo no topo da minha escala de prazer. Agora, no entanto, a cozinha é minha praia, embora eu não consiga ainda me esparramar confortavelmente. O manuseio de facas e panelas, bem como o entendimento sobre temperos e condimentos, ainda permanecem no terreno do desafio. Sigo tentando, pois, de vez em quando, a vida nos faz inverter o jogo: a ordem agora é comer menos; fazer mais.
Recentemente, peguei as receitas antigas da minha mãe. Passei a copiar uma a uma num daqueles antigos cadernos que a gente ganhava no Dia das Mães na escola dos filhos. E sorri ao ver que tinha receitas super difíceis, como arroz e macarrão (sim, minha mãe ditou pacientemente pra mim quando fui morar sozinha). Também recentemente, e sem muita resistência, me vi trocando os programas de arquitetura, design e decoração, que sempre adorei, pelos de gastronomia. A TV a cabo é farta deles. E eu vou aguçando minha curiosidade por meio da gula. Aos poucos, vai surgindo dentro de mim um certo comichão pelas tentativas e erros do fazer. Não tenho a pretensão de ser chef, nunca tive. Mas tenho hoje um negócio movido a gostosuras. Ele exige, então, as tais travessuras.
No food truck Se Essa Rua Fosse Minha, servimos poucas variedades de lanches. O carro-chefe é um pão com linguiça artesanal. Os acompanhamentos são os que fazíamos em nossa casa para o churrasco com os amigos. Meu papel nessa história, além de operar o caixa e cuidar do estoque e fazer compras e fazer a contabilidade e alimentar o Instagram (é coisa, viu?), é cortar o que vai no vinagrete, além de fritar uma batata cujo ponto me desafia. Ah! Também teimo em fazer o pudim de doce de leite – depois de alguns erros, os deuses animados da gastronomia premiaram minha insistência e me presentearam com a perfeição. Acertei, enfim, a fórmula tempo/temperatura do forno.
Cozinhar é desafiador. Meu pai cozinha, minha mãe cozinha, meu marido cozinha e eu... na maioria das vezes, como e lavo os pratos. Como alguém que não nasceu com o dom, a vontade e a paciência para operar forno e fogão vai conseguir se entender num universo que exige maestria, gosto pela coisa, estudo? Não sei, mas hei de descobrir.
Há poucas semanas, tivemos uma chance de operar uma cozinha profissional. Fomos convidados para assumir a cozinha do bar Beco das Garrafas, na estreia de um projeto especial chamado Cozinhando no Beco, que pretende convidar chefs profissionais e - até amadores como nós - a oferecer seu cardápio para os clientes da casa, especializada em cervejas especiais. E, olha, posso dizer, não fizemos feio. Elaboramos um cardápio especial e fomos aprovadíssimos.
Tivemos companhia no teste – da minha mãe, Sara – e na cozinha, das funcionárias do Beco. Tudo deu muitíssimo certo. E pude comprovar na prática o que intuitivamente já sabia: com dedicação, vontade e carinho, vamos além do nosso limite. A experimentação reside na seara do ilimitado.
De passo em passo, a gente constrói uma nova história. Movida a otimismo, desafio e receitas de família, levamos o outro a uma nova experiência. Se for bom para quem prova, será extremamente proveitoso para quem faz. Ficamos, eu e meu marido, felizes com o resultado no Beco. E comemoramos a cada aprovação do nosso sanduíche nas ruas.
Há nesta minha nova vida uma dose gigante de vontade de acertar, de agradar, de acarinhar um público sedento por novidades e por prazer a cada mordida. Há uma ansiedade que, por vezes, adoece; uma dúvida que atormenta; um cansaço que comove os amigos e os familiares. Mas há também um passo dado, uma certeza do caminho que respalda as tentativas. Os erros fortalecem; o medo arrefece e a torcida aglutina.
Gosto de pensar que a vida, quando vivida com a intensidade merecida, abre caminhos, tanto quanto move sonhos. Podemos seguir em linhas retas ou acompanhar as curvas; andar nas entrelinhas ou pular obstáculos. Faz parte. Tudo faz.
Sigo sonhando e tentando, porque não me permito a desistência; não me consolo com o mais ou menos; não posso me deixar abater por qualquer intempérie que a rua possa me apresentar. Hoje, sou uma empreendedora onde quer que eu vá e no quer que eu faça. Sou eu por mim – mas lá no fundo sei que há muitos por mim também. Eu e meu marido, companheiro nessa nova jornada de aventuras, podemos não acertar os números, não tirar a sorte grande, não prosperar de imediato no novo negócio. Mas já temos uma nova história.
Quando estamos na cozinha ou no food truck, muitas coisas podem pesar. Mas há momentos de leveza trazidos pelos sentidos e pelas reminiscências, pelos elogios carinhosos dos clientes e pela reação deles, que acompanhamos de longe e com ansiedade a cada mordida.
Cozinha é feita de sensações. Posso sentir o cheiro de doce de leite da minha vó; do café fervendo das minhas tias; da castanha assando nas antigas sextas-feiras de happy hour, que seguiam por noites adentro na casa dos meus pais e do bolo assando cheiroso depois dos almoços de domingo. Posso aprender a tirar a acidez da cebola roxa e deixá-la crocante, tal como a avó do meu marido fazia.
Aos poucos, o tato vai ficando mais tolerante às altas temperaturas; a curiosidade aguça o paladar; o olfato puxa todos os cheiros e os diferencia. E assim vou recriando um novo ser, animado pelos sentidos, agora mais soltos e desenvolvidos. A vida é ou não é uma eterna novidade? As dores no corpo estão bem suportáveis; as panturrilhas ganharam músculos. Os pés se aprumaram e as costelas, quando aninhadas no nosso colchão velhinho, já me permitem esquecê-las ao acordar no dia seguinte ao trabalho.
Parte desse texto foi escrito num evento de pré-carnaval. Eu ouvia um samba da melhor qualidade. Era sábado, eu sei. Caía uma chuva constante e forte. As pessoas sambavam descalças e estavam ensopadas. E eu estava olhando aquela cena e feliz por testemunhá-la simplesmente. Fazendo o que nem sempre quis, mas ciente de que meu lugar nesse mundo pode ser uma cozinha, um truck, uma redação, um palco, a rua, a minha casa. No fim das contas, o que importa de verdade é a vontade de estar – seja onde for.
Trilha sonora desse post
Judia de mim
Retalhos de cetim
Agoniza, mas não morre
Senhora tentação (com Cartola)
A flor e o espinho ("Tire o seu sorriso do caminho que eu quero passar com minha dor...", não é lindo?)