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Uma semana a bordo do food truck


Food Truck Se Essa Rua Fosse Minha, no Sudoeste. Foto: Luís Tajes

"Não quero ser

o vigário de sua matriz

nem tão pouco

o operário de sua filial.

Quero ser apenas

uma banquinha de camelô

num ponto bem situado de sua alma,

onde eu possa vender

todos os sonhos... "

(Poema de Pezão, recitado por Margô Oliveira, em Ceilândia)

São 18h40 de uma terça-feira ensolarada. Estou de frente ao parque Bosque do Sudoeste, bairro nobre desta Brasília diversa. O tempo é um alento, depois que a chuva caiu sem grandes tréguas nos últimos dias. A Barragem do Descoberto agradece, o brasiliense respira aliviado porque o racionamento não vai piorar por enquanto, mas os food trucks penam com as intempéries. Vou ou não vou, abro ou não abro, ligo ou não ligo o fogo, estendo ou não a tenda? Uma vez que você opte por um trabalho na rua, a dúvida será sua companheira mais fiel. Mas penso aqui baixinho: e quando a vida não foi um poço até aqui de dúvidas?

O bafo quente do chairbroiller e da fritadeira nas costas não ajudam a clarear as ideias. O parque está cheio de gente. Famílias com carrinhos de bebê, adolescentes jogando futebol, atletas correndo, grupos se exercitando. O vento, vez em quando, dá um sopro forte e nossa tenda balança. E, com ela, o nosso lustre coloridinho comprado na Praia do Patacho, agora equipado com uma luz que toca música, presente de papai, um caçador de quinquilharias na web e na vida. Colocamos para tocar nossa playlist de MPB. Nosso vizinho, do XisTchêloko, apelou: trouxe uma caixona de som tocando o melhor do rock clássico. Da melhor qualidade a nossa vizinhança.

(Parêntesis aqui: uma coisa curiosa nesta vida de empreendedor é que toda vez que você acha que teve uma boa ideia, alguém já fez ou fez melhor. É um excelente aprendizado para a vida, pode-se dizer, e um fenomenal banho frio nas suas expectativas sempre. Você que aprenda a lidar com esse 1 X 0 infeliz).

São umas seis e meia da tarde e, de vez em quando, alguém passa devagarinho espiando o olhar para o nosso cardápio, observando os desenhos e as frases impressas no nosso food truck. Há dias em que o cliente parece olhar e não nos ver. Noutros, atraímos feito ímã. É dessa imprevisibilidade que tenho tanto falado nos posts. É preciso aceitá-la como parte do negócio. Mas o autoconvencimento é algo que não aprendi na faculdade, nem na escola da vida.

Ontem, segunda, estava num desânimo só. Com uma pseudovirose que me deixou de cama por um dia. Só pedia aos céus uma dádiva: adoecer agora não. Ouço isso de outros truckeiros. Um amigo, com dores na coluna, nos confidenciou: “Só pedi a minha mulher para não marcar um médico”. Trabalhar por conta própria, pelo menos no início, é não ter direito a ficar doente, é não desanimar por qualquer coisa, é um cair e levantar de fazer gosto.

Por uns instantes, converso com minha Nossa Senhora Aparecida, que faz par com o Buda dourado do meu marido, e peço para que ela abra nossos caminhos. Sempre a mesma gratidão por tudo que temos e o mesmo pedido de proteção, saúde e pensamento positivo. Abro o computador e vou rascunhando esse texto até que avisto rostos conhecidos.

Renato, colega do Correio Braziliense, e Eliane, com a filhinha Clarice, vieram dizer oi e provar nosso sanduba. Nossos ex-colegas de trabalho são sempre presenças queridas. Trazem palavras aconchegantes. Depois dele, veio a Virgínia se apresentar. Também trabalha no jornal. Anos na mesma empresa e nós não nos conhecíamos pessoalmente. Confessou saborear meus textos aqui do blog e veio provar o que fazemos com tanto carinho. Me deixou feliz,

Os amigos, até os não íntimos, nos trazem sorte. O dia que não prometia muito terminou bem. Cliente atrai cliente, amigo atrai amigo. É minha máxima, minha crença.

Quarta é dia de trabalho, mas aquele que não aparece. Mercado, cozinha, posts. Preparação para uma quinta intensa no Buraco do Jazz. O evento, realizado às quintas na Funarte, apresentou nosso truck a Brasília. Lá recebemos convites bacanas, elogios bonitos, abraços apertados e uma acolhida generosa.

É quinta de gramado lotado, como há muito eu não via. O dia quente trouxe uma noite ainda mais quente, sedenta. Muita gente, de todos os jeitos, gostos e intenções. Veio a minha família e outros ex-colegas de trabalho. O som de Clara Telles; a energia de Gustavo, o produtor do evento; o concurso engraçado de cangas; a Brasília que gostamos de saborear - tudo lá.

Chegamos às 16h30 e saímos na madrugada de sexta. Passava de 1:30. Dentro do truck, não houve trégua. A fila e o tempo de espera foram maiores que o desejado. Acabou o pão, a linguiça, o molho, a batata... Boas vendas e uma reflexão sobre o que mudar para atender melhor e mais rápido. Assim vamos aprendendo. E vamos nos desculpando pelo que dá errado. E vamos comemorando o que dá certo com sorrisos ainda discretos.

Na sexta, não havia tempo para dormir até o corpo descansar. A planta dos pés ainda acusava o peso do dia anterior quando o despertador tocou. Precisávamos preparar o dia seguinte. Ceilândia, cidade a 30km do centro de Brasília, nos convidou para um sábado festivo e cheio de cultura. Com três meses de operação, ainda não tínhamos experimentado a rua fora do quadradinho. Queríamos apresentar o Se Essa Rua Fosse Minha a uma população que sabíamos ser criativa, empreendedora, inventiva.

A chegada na Praça do Cidadão foi tensa. Um espaço exíguo para passar o truck e um galho de árvore no caminho do nosso caro teto para captar energia solar. Passamos, enfim. Um colega deu meia-volta com seu caminhão de hambúrguer porque não havia como se espremer na entrada improvisada.

Olho em volta e vejo coreto, quadra, praça, tenda e a concorrência já conhecida de outros eventos - só gente bacana. Ao abrir o truck, descobri que minha santinha Nossa Senhora Aparecida havia sumido. Um descuido que deixa meu coração apertado. Não guardei onde devia. O buda dourado, companheiro dela, jazia no chão. Fiz minha oração forte, pedi perdão pela falha e segui em frente.

Uma foto rasgada no chão, separando corpo e cabeça de uma mulher, não me pareceu bom presságio – mas me convenci que era apenas uma desilusão de amor. Preferi repousar os olhos nas paredes com grafite, na horta feita com garrafa pet presa na árvore, nos bancos animados com inscrições. Vi cabelos e roupas coloridas e coisas que eu não posso contar também. Flertei com as roupas e bijus bonitas, produção de um coletivo de mulheres negras.

No palco, música regional, mamulengos, repente, poesia, forró (teve rock n’roll, mas este não cheguei a ver). Belas apresentações, que não me surpreenderam, pois já conhecia a qualidade de alguns grupos de Ceilândia. O público, no entanto, era diminuto. Pequeno para o palco e estrutura muito bem montada. Os food trucks? Quase invisíveis aos passantes.

Restava-nos trocar sanduíche por chope, açaí, churros. Tentei oferecer batatinha frita por aí. Vendi uma água a certa hora e comemorei. Dei desconto além do desconto no guaraná para um menininho fofo. Descobri bem cedo que não venderia. Intuição é coisa para se respeitar na rua. Para ajudar, choveu. Para ajudar ainda mais, chegaram uns ambulantes com isopor. Para ajudar duas vezes mais, muita gente já vinha com seu matulão abastecido de catuaba.

A certa hora, relaxei. Mirei a paisagem salpicada de gente, o palco bem bacana, com a prestação de contas fixada, para mostrar em quê o dinheiro público (de emenda de deputado) foi empregado. Em Ceilândia, encontrei gente com autoestima preservada e elevada. Encontrei também protesto. A cada momento, organizadores e artistas lembravam "deste governo ilegítimo", dessa reforma trabalhista que subtrai direitos, da tentativa desenfreada de mudar a Previdência. Lembravam do governo norte-americano, que recomendou a turistas que não visitassem Ceilândia. Havia revolta.

“O tempo passou inteiro”, dizia uma inscrição no cimento à beira do palco. Passou mesmo... Com gente dançando sozinha na chuva, com uma dupla de repentistas que lembrou meu Ceará, com poema que me deixou emocionada. Entendi, por fim: Ceilândia não é pra fazer dinheiro, é para encontrar o Brasil que Brasília não vê. E que eu, muitas vezes, também não vejo.

Trilha sonora deste post:

Zé Ramalho

Paraibola

Vilarejo (Marisa Monte)

Vai (Menina Amanhã de Manhã, com Tom Zé)

Disparada (Jair Rodrigues)

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