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Enquanto o cliente não vem


Na Praça do Skate, em Águas Claras

Quando eu trabalhava em redação de jornal diário, frequentemente o tempo ficava curto para ter tanto pensamento e ideia quanto precisava. Desenvolvi uma estratégia: quando o problema era grande, inventava outro. Em outras palavras, quando a demanda do cargo de editora estava me exigindo muito, eu saía para fazer uma matéria. Não que o esforço fosse pequeno, mas era outro, diferente e pouco usual na minha rotina. O resultado era sempre compensador. No fim das contas, concluía que outras pessoas podiam fazer muitas coisas no meu lugar. Algumas, no entanto, só eu podia fazer por mim – como contar histórias do meu jeito. Delegar é uma arte; é também um ato de generosidade. Aprendi tarde.

Só consegui me despedir do jornal quando entendi que tudo ali funcionaria perfeitamente e todas as pessoas das quais eu gostava tanto ficariam bem com minha falta. Não era altruísmo. A culpa é desconfortável. E eu sempre, sempre me sinto em dívida. Assim é. Tem um verso que amo de Fernando Pessoa: “Sinto uma alegria enorme em pensar que minha morte não tem importância nenhuma” (do poema Quando vier a primavera...). Troco a palavra morte por ausência para melhor passar aos olhos alheios. Parece meio “tô nem aí para o mundo”, mas não o entendo assim. Nem é para ser dramático. É apenas a verdade do universo. Quem somos, afinal, se não um grão, uma poeira, um conjunto de moléculas, células, fluidos, partículas? Somos grandes em conjunto. Sozinhos, apenas aprendemos a dar conta de um “eu” que, por vezes, parece querer ser maior do que é.

Na minha caminhada do jornalismo ao empreendedorismo, tenho aprendido muito. A ser mais humilde, por exemplo. Sei, agora mais do que nunca, que sou e estou pequenina a ponto de caber em outra estrofe de Pessoa (em Tabacaria): “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”. Esta é a minha porção areinha do deserto, que mira o oásis logo adiante. Um grão com gigantescos poderes de fermentação. Só não cresço feito massa de pão enquanto descanso – e porque o descanso é escasso. De resto, o cérebro tornou-se um sujeito de vida própria. Anda cozinhando ideias com miolos e deixando tudo em banho-maria pensando que haverá mais força para executá-las no porvir.

Por vezes, quando estou picando vinagrete num equipamento mecânico que parece ter sido inventado no século passado me sinto como Charles Chaplin em Tempos Modernos, um ser travestido de máquina. Só que não, como diria minha filha Paula quando era Paulinha... Pois, no resto do tempo, sei que ando bem pensante, questionadora, crítica. Minha cabeça está traindo o acordo de não criar expectativas, não imaginar o futuro e não temer os dias que virão. Passou a fase de só viver o tempo presente (durou um mês só!), passou a etapa de imaginar que o esforço repetitivo do trabalho é meio meditação. É não, amores. É dureza mesmo. Eu trato de botar um pouco de poesia para ficar mais palatável. Neste momento, não há glamour na minha rotina. E é bom que seja assim. Estou amadurecendo e, no íntimo, isso significa abrir mão de ilusões - não confundir com vontades, planos e sonhos.

Tenho repetido para as pessoas que comentam sobre a minha coragem de largar um emprego para se aventurar a bordo de um food truck que não precisamos ser uma só. Eu não deixei de ser jornalista. Olho tudo como repórter, às vezes como cronista, embora sem a pretensão de sê-lo. Creio mesmo, por tudo que tenho lido e conhecido, que podemos ter muitas profissões, atividades, hobbies. Não há conflitos nessa multiplicidade. Acabou aquela história de sou jornalista e pronto; sou funcionário público e pronto; sou caixa de food truck e pronto. Somos o que quisermos ser, o que pudermos inventar para nos sustentar ou nos distrair.

Podemos fatiar o ego para dar conta das porções de nós mesmos. Às vezes, digo para minhas versões: “Começou o revezamento”. Sai a triste, chega a feliz, que expulsa a chata, que maltrata a legal, que cede a vez à desanimada, que atrai a sonhadora e por aí vai. A perfeita quadrilha, que não é a de Drummond, é só a minha.

Não é fácil existir. Pode ser bem tranquilo viver sem questionar, sem procurar sentidos, sem incertezas. Nunca consegui seguir um script. Não planejei os filhos, não guardei dinheiro, não medi meus passos na carreira com a métrica do sucesso. E jamais achei que ser assim fosse uma vantagem. Eu só não consigo. Costumo pensar que não tomo decisões; são elas que me tomam. Me abraçam com a força de um leão, de modo que é impossível não aceitá-las como absolutamente naturais, minhas, próprias e certas.

Mas sobre o que é mesmo esse post? Não sei. Escrevo há alguns dias da janela do truck. Entre um cliente e outro, olhando para parques, praças, ruas, cães, famílias, crianças, namorados, senhoras, grafismos, letras e paisagens urbanas, dou atenção à palavra que me chama. Frase a frase, rascunhei esse texto aqui. Não para passar mensagens, talvez para simplesmente não calar o que me sobra.

Sou de pouca conversa, mas de muita energia interna. Posso ser um vulcão às vezes (risos! Não me entendam mal). Mas, na maioria das vezes, sou mansa, tal qual o mar de Corumbau, na Bahia, que nos últimos tempos tem inundado meu vidrinho de desejos recolhidos. Para dar conta desse eu, que ferve por dentro e acalma por fora, só mesmo o papel, a tela ou algo que o valha.

Originalmente, esse post era para falar de tempo e espaço. Das horas que agora passam em ritmo diferente; do tempo que não se conta com horas ou minutos, mas com chuva e sol. E da vida, que ganhou ondas e picos. Ora observo de baixo e imagino como escalar a montanha; ora miro todo o resto lá do alto, do lugar onde estão as pessoas que ousaram sair da zona de conforto para buscar novos sentidos para a vida. Quando estou lá, sinto-me de verdade privilegiada. Mas acabou saindo assim... Posso chamá-lo de reunião de pensamentos e sensações que me assaltam de vez em quando. Já que não dava para gritar "pega, ladrão!", tive de capturá-los eu mesma. Obrigada pela leitura.

Playlist do post

O silêncio da rua

O barulho da rua

O som do pingo de chuva

A voz do vento

Choro de criança

Rodas de skate do asfalto

Buzina de carro

Sirene de polícia

A campanhia da senha do food truck

PS: no próximo, haverá música de verdade (hehehe)

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