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Sobre ter o que é preciso ter: família e amigos


No Picnik. Por Luís Tajes

Certa vez disse aqui neste blog que gostava de imaginar que o silêncio é a música que Deus compôs para mim. Nos dias mais difíceis e também nos mais emocionantes, gosto de voltar para o estado de recolhimento. Tal como um ventre, ele me protege, às vezes até de mim mesma. Vivi emoções demasiadamente intensas nas últimas semanas. De forma que até a palavra me faltou. Ela, que sempre salva; que recentemente me lançou novamente no mundo com nova identidade; que me assegurou um lugar de conforto... Mas eis que não podia deixá-la fugir novamente e me lancei a buscá-la onde quer que fosse. Pesquei uma aqui e outra ali para tentar imprimir neste papel virtual os meus sentimentos.

Emoção, para mim, é gangorra. Não há alto sem baixo. O negócio é saber quando se está em cada lugar e reconhecê-lo como um espaço de aprendizado. Pois não há nada mais a fazer na existência terrena do que evoluir como ser humano. Como sempre tive medo não apenas da tristeza, mas também da demasiada alegria, posso dizer agora da saudade que sinto de uma vidinha mais ou menos. Que não é a que já tive, quando estava numa redação de jornal, nem a que hoje tenho, a bordo de um food truck. O viver no limite, para mim, sempre foi e sempre será uma prova de fogo. Coloquei-me em disputa. Mas, quando paro bem quietinha e começo a pensar em estratégias, sossego um pouco porque, de uma forma ou de outra, sinto que já venci.

Há quase um mês, fiz uma transição. Do plano para a concretude. Já tenho uma nova persona. Uso uniforme, tênis, unhas curtas, brincos pequenos e apenas aliança, além do pingente de Nossa Senhora Aparecida, companheira de sempre. Também visto touca e bandana. E garanto que é difícil me reconhecer no espelho. Alguma maquiagem me mantém mais próxima da forma como sempre me apresentei ao mundo.

Olhares já conhecidos me investigam, curiosos, tentando pescar o alguém que já fui e o que me tornei, como se eu tivesse de fato me transformado em outra pessoa. Acho engraçado. Mas tudo bem. Também me estranho. Só não me faço a pergunta que sempre me chega aos ouvidos: "Você está feliz?". Com toda a sinceridade, não me importa o que não busco. Essa tal felicidade, fundada apenas na expectativa do que pretendíamos ser, ter ou fazer é a vista do oásis no deserto. Até pode saciar a danada da mente, mas é irreal. De forma que nunca foi para mim um objetivo.

Meu novo eu tem a mente inteiramente concentrada no trabalho e o corpo tão cansado que, vez em quando, sinto que ele se descola da minh’alma e faz percurso próprio, sem qualquer comando. Minhas costas ardem, meus pés doem e os dedos acumulam pequenas lesões, entre arranhões, cortes e leves queimaduras. É insana a rotina de quem trabalha na rua. Daí o meu respeito e minha admiração por quem ganha a vida a bordo de um food truck. Não sinto fome, só sede. Troco qualquer prato por banho, cama e uma cerveja gelada. E, aos poucos, ganho músculos. E, dia a dia, também aos poucos, as articulações vão se aninhando e deixando a máquina trabalhar com mais harmonia. Tenho a impressão que a insistência em fazer e o desprezo à dor são como um óleo que azeita e desenferruja.

As noites são curtas para o sono e longas para o trabalho. Quando volto para a casa, no carro de apoio, frequentemente já passa da meia-noite e ligo o som bem alto. Invariavelmente, venho cantando a playlist do truck. Ao chegar, depois de descarregar o carro, guardar o que precisa ser guardado, eu e meu marido sentamos na nossa varandinha e conversamos baixinho para não acordar os vizinhos. Cansados, suados, abrimos uma cerveja e comentamos o dia. Olhamos um para o outro com a certeza de que nada é pior do que morrer reclamando do que não se tentou. Descobrimos que os passarinhos que visitam a laje onde moro cantam na madrugada e não só de manhã cedinho. Eles não nos acordam mais; agora, nos põem para dormir.

Pouco leio, pouco vejo meu amado Instagram. Pouco converso com os filhos e preciso contar com a compreensão deles. Ouço perguntarem: "Foi bom hoje?", num misto de apreensão e torcida. Sinto que intimamente indagam a si próprios se essa rotina atribulada era de fato o que eu queria. Mas creio que, mais na frente, a dúvida vai sucumbir a uma certeza: minha mãe mudou de vida e eu também posso mudar quantas vezes eu quiser ou achar necessário. Sempre há tempo; sempre é tempo. Haverão de saber que este é meu legado para eles.

Nos seis meses de planejamento, o período de transição entre o jornalismo e o empreendedorismo, li mais livros, vi mais filmes e ouvi mais música do que na década anterior. Convivi com meu cantinho e minhas coisas com a intensidade que me abastece. Dormi bem, conheci pessoas, prospectei mudanças da vida alheia e fiz algumas viagens curtas. Escrevi como nunca, ouvi histórias e pude observar tudo com olhos de quem deseja ver e ter esperança.

Foi lindo planejar. É penoso colocar em prática. Todos os erros gritam para você. Todo o tempo que agora falta te condena a pensar se valeu a pena todo o esforço. Toda a coragem que lhe atribuem te desafia dia a dia a não desistir, a não esmorecer, a não se arrepender.

As vontades mudaram; as perspectivas também. Não penso nos restaurantes que deixei de ir, na terapia que abri mão, nas viagens que agora não posso fazer. Não penso em nada do que já foi ou poderia ter sido. Deixei de lado as conjecturas e passei a respeitar o tempo presente, dar-lhe a prioridade devida. Não deixa de ser uma espécie de meditação.

Vivi desde a inauguração uma torrente. Tive, em curto espaço, profunda alegria e grande tristeza. No espaço exíguo de um food truck, lutamos contra algumas condições adversas, como o bafo quente na nuca. Fora dele, a seca e o sol inclemente, impiedosos para a cidade, para a natureza e para o corpo humano, são bons para o negócio. Mas a chuva de granizo que caiu no dia da nossa inauguração serviu para nos ensinar o quão mais difícil pode ser o que já é difícil.

O meu relato pode levar você a pensar que há mais incômodo do que êxito na nova rotina. Não é. Quando abro a janela do Se essa rua fosse minha, o nosso food truck, posso garantir a você que todo o cansaço, o sono, a sede e a dúvida, se dissipam, ainda que seja por um momento.

Não há vírgula nessa sentença: sou o que me propus ser. Realizar, não interessa a que custo, é infinitamente melhor do que sentar e esperar. O fazer é o meu novo verbo. O pensar é para de vez em quando. É assim porque há tempo para tudo nesta vida. E esta é a hora da prática, do teste, do trabalho braçal, da experiência.

Recomeço é desafio. E desafio é resistência. No meio de tudo isso, há o que não poderia faltar: o apoio incondicional da minha família. Tenho filhos, pai, mãe, irmãos, sogra, cunhados, sobrinhos, primos, enteados, tios, nora e mais uma porção de agregados – amigos que se tornaram também parentes. Eu e meu marido podemos contar com uma força de trabalho, de orações e de uma energia poderosa que funciona como um escudo. Somos absurdamente protegidos por eles. E também por amuletos e crenças.

Um parêntesis aqui: descobri a força que pode haver numa família quando fiquei grávida aos 15 anos. Meu pai passou a acordar e fazer meu café e me levar na escola de carro; minha mãe, leoa, desafiava todos os olhares preconceituosos. Eles e todos os meus parentes e também a família paterna da minha filha me acolheram de tal forma que nunca pude ter dúvidas daquele que seria o maior presente da minha vida: proteção. Sempre fui cuidada. Ao longo da vida, fui ganhando mais e mais protetores, entre os vivos e os mortos. Sei o quanto isso faz a diferença na vida de alguém. Sobretudo, sei o que é ter uma mãe como a minha, que continua guerreando contra qualquer circunstância adversa em nome do amor aos filhos. Jamais poderei agradecer.

Também não posso deixar de citar os amigos, inclusive os que eu não sabia que tinha. No dia da nossa inauguração, havia tantas pessoas. Imaginei que muitas estariam lá. Mas chegaram tantas outras que não pensava em encontrar... Recebemos, eu e meu marido, por meio das redes sociais mensagens pra lá de carinhosas. Muitos foram nos abraçar. Precisei segurar o coração na mão e engolir o choro para sustentar o rímel e o batom vermelho até o fim. Eu me senti abraçada e acolhida por aqueles que nos olhavam com carinho e nos achavam as pessoas mais corajosas do universo. E me deram a mais linda lição que recebi em todos os meus anos de vida: sozinho, você não é ninguém.

Por onde eu vou, eles estão lá (alguns em especial vão com frequência – minha amiga Sibele, obrigada por estar em todos os lugares onde estou!). Eles perdoam falhas, demoras, faltas, baixas no cardápio. Compram mais do que são capazes de comer. Seguram na minha mão e perguntam como estou. Torcem e são solidários na dor. Há também uma energia que destoa das boas intenções, dá para sentir. Agradeço também por ela, já que não ouso lutar contra inimigos invisíveis. Eu os aceito e rogo para que encontrem seus caminhos.

Até hoje, coragem é a palavra que mais ouço para definir nossa mudança de rumo. Mas não sei exatamente se esse verbete tem para mim o mesmo significado que tem para as outras pessoas. Por muitas vezes, não tive foi coragem de ficar onde estava, inerte, esperando as coisas melhorarem. Minhas guinadas foram também rotas de fuga. Chutar o balde, como se diz, nem sempre é coragem. Às vezes, é falta de força ou de vontade para ficar e mudar tudo em volta. Admiro igualmente aqueles que permanecem e batalham até o fim pelo que acreditam.

Tenho conhecido muita gente com histórias transformadoras. A rua já não me parece um ambiente tão hostil quanto eu pensava. Pela janela do truck, enxergo o pôr-do-sol, os sorrisos satisfeitos, a seca e as flores, os cachorros e crianças. Vejo toda a dinâmica da cidade e a diversidade do ser humano: as famílias e os casais de todo tipo, os solitários e os solidários, os educados e os curiosos. Observo as cenas e as descrevo na minha mente, fazendo um tipo de jornalismo que não vou poder mostrar: o mental. Vivo tudo isso do lugar onde quis e me permiti estar. Poucos têm esse privilégio. Já deu certo.

Playlist do post

(Todas da playlist do Se essa rua fosse minha)

Vilarejo (Marisa Monte)

Tocando em frente (com Maria Bethânia)

(They Long do be) Close to you (Isabela Taviani)

Felicidade (Marcelo Jeneci)

Love you (Mallu Magalhães)

Preciso do teu sorriso (Mariana Aydar)

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