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Não basta abrir a janela – o recomeço


Se essa rua fosse minha food truck & news, com Cristine Gentil. Foto: Luís Tajes

Já são cinco noites sem dormir. Logo eu que durmo sentada, durmo no carro, durmo a qualquer hora do dia. Nunca perco o sono. Nos últimos dias, minha cama ganhou espinhos. Reviro-me em agonia, espetada por câimbras e sustos em meio a esparsos cochilos. É grave a crise. Não fosse, sentiria apenas o estômago processando as emoções. Meu aparelho digestivo é, por assim dizer, um termômetro poderoso da minha ansiedade. Sou íntima da gastrite, do refluxo, do enjoo, da enxaqueca, mas não conheço a insônia. Não sei o que fazer com ela. Tento meditar, rezar, contar até mil. E nada.

Pareço calma, todos dizem. Na verdade, sou controlada. Como alguém no topo da escala da timidez, mantenho trancadas dentro de mim as mais poderosas angústias. O resultado de um corpo-cárcere pode ser contabilizado em prontuários. Há um histórico de órgãos perdidos. Não tenho amígdalas, nem apêndice, nem vesícula, nem útero. Também tenho uma coleção de ossinhos danificados, fissurados ou deslocados. Braço, os dois pés, dois dedos do pé, uma falange do dedo da mão. Sem contar uma crônica tendinite de pata de ganso e dores no ciático.

Não desconfio; tenho certeza de que boa parte dessas baixas e acidentes decorre de somatização. Mas ser consciente não quer dizer necessariamente ser sapiente. Não encontrei a cura da degradação do corpo. Ele sofre com a mente. Um provoca o outro, e você que se vire para conseguir a sonhada paz. Poderia compensar esse momento de nervosismo com investidas em saúde. Fiz o oposto.

As visitas a nutricionista cessaram, as caminhadas tornaram-se mais do que esporádicas. Mantive os princípios bem básicos da dieta (tipo: refrigerante jamais, seria um retrocesso tremendo), mas incorporei ao cardápio detalhes que fazem toda a diferença (algo como frituras, tá bom pra você?). Parei de contar os quilos a mais. A balança pode ser mais cruel que o espelho. Dra. Tamara Aragão, minha nutricionista, me alertou seguidas vezes que precisava controlar o ímpeto tão logo aparecesse, mas a vontade é traiçoeira demais. Daí para a autossabotagem é um pulo. Vai por mim.

O fato é que meu espírito está revolto. Estamos, eu, meu marido e a família toda que nos acompanha, em contagem regressiva. E no zero vai chegar o quê? Para a gente, é o novo ano. No calendário, tem um post it pregado na data 1º de outubro de 2017. Está escrito: recomeçar. Parece uma bobagem sem tamanho, afinal é um food truck que vai ganhar as ruas, um site que vai entrar no ar, mas há tão mais nisso do que parece... Esses empreendimentos podem ser bem irrelevantes aos olhos alheios. Para nós, são a parte palpável de uma escolha que envolve mudança radical de vida, perdas e ganhos. São as fichas mais valiosas da aposta agora jogadas sobre a mesa. As inseguranças fazem fila. E a fila é a perder de vista.

Há seis meses, assinei esse contrato de risco. Saí do meu emprego, da minha rotina, da minha segurança em busca de um novo sentido, algo diferente que me transformasse em ser vivo, criativo e desperto na cadeia produtiva. Profissionalmente insatisfeita, não pensei muito no que viria, só no que deixaria para trás, inclusive um bom salário. Parti e permaneço sem qualquer arrependimento. Mas é preciso, agora, garantir renda.

Decidimos buscá-la de forma pouco confortável. Pela concorrência, pela hostilidade que pode haver num ambiente como a rua, pelo cansaço que virá. No fundo, gostamos de uma aventura e acreditamos em demasia que há gratas surpresas no caminho. E digo: essas coisinhas boas chegam quase todo dia. Como um e-mail que recebi sobre os meus posts, dizendo que, de certa forma, os textos que escrevo são como um ombro virtual. Obrigada, leitor! Pela companhia nesse processo, pela presença no blog, pelos quase 50 mil views no meu depoimento para o Projeto Draft. Fiquei sem fôlego de tanta alegria.

Nosso projeto, chamado Se essa rua fosse minha, demorou e custou bem mais do que o previsto. Perdemos a seca, o timing, muitos eventos bacanas na cidade. Perdemos, muitas vezes, a paciência conosco mesmo e com os outros. Temos hoje mais medo que vontade. Não sabemos se queremos ou não uma fila na porta do nosso truck, se estamos preparados para cozinhar, embalar e servir, se vamos conseguir controlar estoques, fazer as encomendas na hora certa, calcular as quantidades para evitar perdas. No início, sabemos que será apenas experiência. E pedimos desculpas antecipadas por tudo o que eventualmente possa der errado. Na inauguração, ficaremos devendo um pouco, eu sei. Ainda falta muita coisa. Mas tudo se ajusta aos poucos. Somos caminhantes em percurso desconhecido. Logo, errantes numa trajetória que é puro aprendizado.

Lembro-me aqui da época de colégio. Sempre fui boa em humanas. O que acabou me deixando ótima em exatas. Fui, inclusive, monitora de matemática no segundo grau. Não há contradição. Eu simplesmente estudava o triplo tudo aquilo que eu não sabia. Virei expert em tabela periódica e em genética. Lia as teorias até entender como os matemáticos chegavam às fórmulas. Usava interpretação de texto e história para me encantar pelos grandes nomes das ciências. Pura estratégia. Funcionava. Pois bem: agora, vou ter de retomar os estudos. Princípios de culinária, excel, sistemas de informática. Mídias sociais e relações públicas para lidar de forma leve com o consumidor. Espero conseguir.

Ontem, 28 de setembro, fomos para a rua meio escondidinhos só para testar os equipamentos do carro e o tempo das coisas, o nosso encaixe e as inevitáveis esbarradas lá dentro. Mas um e outro parou, experimentou e disse que aprovou. Um menino passou cantarolando a música "Se essa rua, se essa rua...", com um sorriso no rosto. Um concorrente fez muitas perguntas e botou uns medos, fez-se de parceiro, trouxe a comida dele como presente. Mas a desconfiança me assaltou e sei que é preciso baixar a guarda.

A rua é uma loteria. Mas sempre poderemos contar histórias, ouvir pessoas, compartilhar bons momentos, receber os amigos e as críticas - e assim aprender também como ser humano. De certa forma, nosso truck é uma extensão da nossa casa, um puxadinho com rodas e boas intenções. Levaremos nele os valores que cultivamos, com desenhos que estampam nossos desejos por uma cidade inclusiva e amorosa.

O layout do carro não tem nada a ver com food truck? Não, não tem. Tem a ver comigo e com a minha família. Também tem a ver com pessoas que desejam compartilhar o espaço público e os desejos de uma Brasília melhor. Querer unanimidade é pedir demais. Ficaremos felizes se conseguirmos conquistar algum espaço, respeito e uma história vitoriosa, que, sabemos, não será escrita sem erros.

Trilha sonora do post: Pra você (Roberta Sá) Singular (Anavitória) Shape of You (Ed Sheeran) Acontece (Nana Caymmi) Codinome Beija Flor (Cazuza) Estado de Poesia (Chico César) De toda a cor (Renato Luciano)

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