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Vem comigo para um lugar especial

“Sobre os escombros ainda quentes a família construiu seu refúgio definitivo. Uma casa linear de oito cômodos sucessivos, ao longo de um corredor com uma mureta de begônias onde as mulheres da família sentavam-se para bordar e conversar na fresca da tarde. Os quartos eram simples e não se diferenciavam entre si, e só precisei dar uma olhada para perceber que em cada um de seus incontáveis detalhes havia um instante crucial da minha vida...”

(Gabriel García Márquez, em Viver para contar)

Esse post deveria ter mais foto que palavra. Deveria ter pernas pro ar, cama macia, frutos maduros, botões já floridos, cheiro de churrasco, pés descalços, pipoca no sofá, barulho de vento, som de campanhia tocando, dos passos das visitas chegando, do canto dos passarinhos logo cedo, de risos coletivos. Quisera eu que a realidade virtual já fosse acessível e estivesse ao alcance desses dedos que agora teclam. Acredito que seria mais fácil levar vocês, meus convidados, para um lugar especial onde todas essas sensações poderiam ser de fato compartilhadas. Pena que não dá, mas vou tentar conduzi-los mesmo assim.

Não sei dizer se moro na minha casa ou se é a minha casa que mora em mim. Porque sinto mesmo que ela me acompanha por onde eu vou. Está no coração, na memória, na pele, na alma. Está na saudade quando eu estou longe e no conforto quando estou perto. Minha casa é a casa do poema de Carlos Drummond de Andrade (Casa Arrumada), a casa que não é centro cirúrgico, nem cenário de novela. Que tem cama revirada, gaveta de entulhos e enfeites que trocam de lugar. Nada por aqui me parece inanimado. Os objetos passeiam, sou capaz de jurar. Aqui, não só as pessoas descansam, as coisas também repousam, encontram seus lugares.

Mudamos, eu e a família, para Águas Claras em março de 2010. Para o apartamento que lamentei não ter comprado pelo menos três anos antes porque já estava ocupado. Na época, como não achamos nada que soprasse aos nossos ouvidos a frase mágica “É esse!”, adiamos os planos e permanecemos no caro aluguel do Sudoeste. Por uma manobra linda do destino, quando voltamos a procurar um cantinho próprio, o lugar dos sonhos estava à venda. E chegamos até ele por uma corretora que não sabia do nosso interesse anterior. Coisas da vida, da parte boa da vida, eu diria.

Moramos num mezanino. Entre o térreo e o 1º andar. Temos vista para um conjunto gigante de prédios. E boa parte das centenas de pessoas que moram lá têm vista direta para nossa intimidade. O que poderia ser bastante desconfortável para uns não chega a ser um transtorno para nós. Que compensação haveria diante do fato de que meio mundo já me viu de roupão de banho regando plantas ou catando cocô de cachorro? Acredita que as pessoas param do outro lado da rua e, ainda assim, conseguem assistir à TV da minha casa? Mas existe contrapartida para isso tudo, eu juro.

Temos uma laje particular. E ela é bem grande. Começa fininha na varanda da frente e se desenrola grande e larga para o lado e para o fundo. No início, só tinha chão no pátio – além, é claro, do apartamento de quatro quartos de tamanho bem honesto. Aos poucos, a laje foi reformada, coberta, customizada, climatizada, plantada, povoada. Aos poucos, foi amada. O que era espaço tornou-se quintal, pomar, horta, churrasqueira, lugar de reunir a família e os amigos. O concreto floresceu e frutificou. Devolveu o investimento em bons momentos. Bons não, excelentes.

Hoje, quando ouço os passarinhos, colho a jabuticaba, o limão, a tangerina, a cajarana, o manjericão... Quando saio para tomar um solzinho ou para sentir a brisa fria no escuro da noite... Quando vejo o olhar de surpresa de cada um que entra e conhece... Quando olho o tamanhão da árvore da felicidade, que chegou como uma muda trazida pela minha filha, presente do primeiro dia de aula na escola nova... O que eu penso e sinto é que a minha casa tem me feito muitos convites carinhosos. E irrecusáveis.

Sempre fui caseira. Nos últimos seis meses, nosso apartamento foi um habitat mais do que generoso. Por força das circunstâncias que o desemprego impõe, tornou-se escritório, lugar de pesquisas, depósito de food truck, sem deixar, é claro, de ser o refúgio de sempre. Sempre culpei o trabalho por não explorar a cidade, ir a exposições e ao cinema, conhecer lugares novos. Hoje, lá no fundo, sei que o impedimento era de outra ordem. Era maior a vontade de simplesmente ficar, estar.

Nossa casa tem cores básicas e berrantes. Tons sóbrios e apelativos. Tem coleção de gatinho chinês, parede berinjela com almofada laranja, mil lembranças de viagem (como o Pinóquio comprado na loja do Pinóquio e a salamandra de Gaudí, cito esses porque adoro), santos de diferentes materiais, muitos budas espalhados, cadeiras que íam para o lixo e reformamos, buldogues de louça, máscaras de Veneza, Cartagena e Puna Cana, um lavabo com exposição fotográfica, fotos do marido por todo canto, suculentas de crochê e de verdade, baú antigo, quadros por pendurar, parede por pintar. Às vezes, nada combina com nada. E, ainda assim, tudo faz par com a gente, se encaixa no nosso gostar.

Na laje, há mais lembranças do que cuidamos do que daquilo que descuidamos. Graças ao Luís Tajes, meu marido, que planta, enquanto eu colho. Com dedicação, semeou cada muda que vimos crescer. Exterminou muitas pragas; deu cabo, infelizmente, do maracujá que se bandeou para o vizinho, para garagem, até que virou um corpanzil tão sarado que a laje não suportaria. As roseiras não resistiram à reforma. As suculentas e as frutíferas vão bem, obrigada. Temos palmeirinha onde canta o sabiá e um bouganville que chegou mortinho e hoje rende flores e mais flores para alegrar nossos budas.

Como nem só de alegrias vive uma laje de concreto, preservamos uma plantinha que morreu. Iluminamos nosso fracasso com bolinhas vermelhas compradas na Feira da Liberdade, em São Paulo. Era para o Natal, mas virou companhia perene para os galhos secos. É bom olhar para ela e ver que mesmo quando não dá certo pode ser bonito.

A nossa demissão ajudou a reduzir o tamanho da dívida para pagar tudo isso, mas ainda falta um bocado de tempo e de dinheiro para terminar o financiamento. Não temos apego pelo apartamento em si, apesar de ser um lugar bem diferentão de tudo que há por aí. Mas temos amor por toda a história construída aqui. Se um dia tivermos de sair, ok. Levaremos conosco um acervo consistente de memórias vividas neste lugar - que, no fundo, é o que a gente consegue levar da vida.

A casa da gente é uma espécie de almoxarifado, uma despensa de alimentos sem prazo de validade e de valor intangível. Deve nos abastecer com referências, contribuir para dias tranquilos, abrigar o corpo e proteger a mente. Agora, quando começar a trabalhar muitas horas na rua, é bom saber que meu descanso tem endereço. E ele nunca me decepciona.

Trilha sonora deste post:

As coisas tão mais lindas (com Cássia Eller)

Para você guardei o meu amor (com Nando Reis e Ana Cañas)

Detalhes (com o rei Roberto)

Cabide (com Mart’nália)

Preciso do teu sorriso (com Mariana Aydar e Dominguinhos)

Tudo que for leve (com Alice Caymmi)

Flor de Lis (Djavan)

Passarinhos (Emicida)

Todas da playlist de MPB do Se essa rua fosse minha

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