Bono, você é a saudade que eu gosto de ter
Dos gêneros literários, a carta é a mais pessoal e afetiva. Escrevo para falar de saudade por alguém que não pode me ver, nem me ouvir e nem poderia jamais me responder. Mas como tenho minhas desconfianças sobre o alcance do amor, elevo meus pensamentos e eles vão chegar a um lugar sem CEP: o coração de cada um que teve a sorte de conviver com um animalzinho.
Querido Bono,
O sofá agora é todo diferente. Grandão, cinza, de linho, cheio de almofadas que você ia adorar destruir. Aquele de couro marrom, bem confortável e velhinho, foi para a chácara, mas ainda tem seu cheiro, acredita? Agora tem tapete fofinho, bem macio, na sala. E também quadro encostado no chão, uma caveira prateada para fazer par com um de seus sósias de louça e, no lugar da sua casinha na varanda, um memorial, com suas fotos e os santos. São Francisco te abençoa sempre e, cá para nós, tem nos dado uma forcinha também.
As coisas não estão lá muito fáceis para ninguém aqui embaixo. Um tal de Temeroso assumiu o poder. Quer, entre outras obscenidades, acabar com a Amazônia. Gisele teve de descer de novo para intervir, acredita? Andaram achando malas e malas de dinheiro roubado. Censuraram exposição de arte. Teve terremoto no México. Furacões em série cada vez mais fortes no Caribe e nos Estados Unidos. Tem maluco duvidando do aquecimento global. E tem mais dois doidos, um na Coréia do Norte e outro nos EUA, querendo disputar o concurso de Mister Universo.
É, Boninho, o Brasil parece envolto numa nuvem cinza, o mundo está cada vez mais estranho e uma nova praga pegou de jeito o bicho-homem: uma caretice sem tamanho. A gente não sabe bem como tudo isso vai acabar, mas os memes na internet são impagáveis. Você ia adorar comentar no face. Aliás, sua conta tá ativa ainda, viu? Continua cheio de amigos, só não posta, nem comenta. Você agora é silencioso, ainda mais quietinho, só o ouvimos nos sonhos, repetindo aqueles cinco latidos que deve ter dado enquanto viveu. Cadê a coragem de apagar o teu FB danado se ele vive nos mandando lembranças? Esses algoritmos sabem o que fazem... Lembra da postagem abaixo? Teu pai se divertia muito sendo teu alter ego.
Antes de passar para as novidades da família, preciso te contar só mais uma coisinha: teu Grêmio foi pentacampeão da Copa do Brasil. Você não viu essa, mas não pode reclamar. Tenho certeza que guarda no coração e na memória aquele 5x0 no Inter. Ri sozinho aí, seu danado.
Aqui em casa as novidades são boas. Primeiro, os meninos:
A Nanda continua toda linda e responsável, meu orgulho. Mora no apê dela, com a Rebeca, recebeu promoção no emprego e entrou na pós-graduação. Tomás herdou a suíte, fez 18, me convenceu a tirá-lo da escola antes do tempo, ficou tão feliz que botou até brinco. E continua me prometendo que será rico sem ser babaca. Paula faz 15 em março e já começou toda aquela ansiedade por uma festa, assistiu tanto a Grey’s Anatomy que decidiu ser médica pediatra e tem se dedicado mais aos estudos.
Taís continua na ponte Brasília-Chapada, conseguiu até uma bolsa na UnB para transformar o lugar do coração em lugar de trabalho. Namora um cara bem legal, o Victor. Gabriel tá gigante, não ia mais poder dividir o sofá contigo. Toca baixo na banda Havona e joga vôlei num time grande. Continua caladão, mas sorridente.
As famílias de Brasília, de Fortaleza e de Torres estão ótimas, todo mundo bem. Sempre falam de você com carinho... Chegaram uns primos caninos novos. Além da Chanel, agora tem a Frida, uma lady, e o Ozzy, um capetinha, os xodós do Gugu. Tem também a Amora, da tia Virgínia, e o Bruce, da Bruna e da tia Zu. Tia Michelle endoidou de vez – além das galinhas Falsiane, Pestiane e Deidiane, cismou que quer uma minicabra e já até batizou: Géralda (assim mesmo com a sílaba tônica no lugar errado). Ah, Boninho... No mesmo ano que você foi passear nas nuvens, viu quem te seguiu? A Pity, o Eddy, a Nina Flor... Se encontrar com eles por aí, manda abraços!
O tempo passa rápido, meu amor. Anteontem fez um ano que você partiu, a Nanda lembrou. Partiu desse mundo. Partiu um montão de corações. Ainda choramos e damos risada com suas lembranças, com suas fotos, com suas poucas estripulias, com seus hábitos estranhos.
Você gostava de chupar gelo, lembra? Sempre que tem churrasco na laje, te vemos ainda ao lado do isopor esperando sua lasquinha gelada. Lembramos do seu medo de trovão, do ronco que reverberava alto, da cara amassada e daquele jeito de se espreguiçar tão gostoso. Lembramos de quando você dormia sentado, quando abria a boca para escovar os dentes com sua pasta de frango, quando fugia das selfies e das fotos – o que não deixou de transformá-lo no buldogue mais fotogênico do mundo, quiçá do universo.
Como pode um cachorrinho preguiçoso, sorumbático, hipocondríaco e remelento fazer tanto sucesso? Você era um encantador de gente, Bono Blue. Aposto que veio chipado com um ímã, que puxava para o seu lado cada humano desta terra aqui. Impossível não grudar o olho no teu olho pidão, não retribuir o aceno da tua pata pesada, não sentir tristeza com tua tristeza. Tua alegria fez muita companhia à nossa. Tua existência acabou por dignificar a nossa, deixando-nos mais humanos, mais solidários, melhores, por assim dizer.
Acabou acontecendo o improvável. De tão lindo, virou mascote depois de morto. Não foi nada premeditado. Quando nos pediram uma foto de um cachorro para colocar no desenho do food truck que estamos montando, mandamos a sua. O desenho, que era para ser um detalhe, ficou tão lindo que acabou agregado à marca. Virou nosso cartão de visita também. Nosso antigo cão repórter e blogueiro vai ser um fantasminha estiloso rodando por Brasília, encantando a vista de toda a gente. O blog Mais Bichos, do Correio, que você assinava, agora é feito pela Paloma Oliveto e pelo Bentinho, aquele pretinho marrento que mandava em todo mundo lá no Kinder Borges. Eles fazem sucesso com a audiência.
Sobre o food truck, preciso te contar. Sei que é difícil acreditar, mas eu e seu pai saímos do jornal. Nos últimos seis meses, temos planejado um novo meio de ganhar a vida. Vamos vender comida por aí e também fazer um site com notícias colhidas na rua. Sabe aquela ansiedade que você ficava quando percebia, no carro, que estava perto da creche? Tipo isso. Temos dentro do peito a alegria represada. Nosso coração virou uma gaiola, cheia de riso pedindo para ser solto. A gargalhada virá, estamos certos. Mas tá tudo meio atrasado, a chuva vem aí e o calor cresce dentro da gente. Essa demora – e toda a burocracia da coisa – está nos judiando, preciso dizer.
Tenho certeza de que você iria gostar de ter a gente em casa por mais tempo. Estaria agora aqui ao meu lado, arranhando minha perna, encostando o fucinho gelado ou puxando minha pantufa velhinha (que continuo usando, mesmo com as marcas dos seus dentes fortes). Eu teria de parar de escrever a toda hora para apertar suas dobras e coçar sua barriga até te ver fechando os olhos, suspirando bem fundo e alto. Depois, ia dormir, dormir e sonhar, revirando os olhinhos e tremendo as bochechas.
Ai, meu menino, quanta falta você faz. Hoje, te buscaríamos de novo naquele canil lá longe, o último da ninhada, meio rejeitado, a gente logo viu. Pagaríamos de novo por todas as rações caras, pelas cirurgias nos olhos, nos dentes, a castração; pelas consultas com especialistas, os remédios pra transplantados, os xampus especiais, as diárias da creche para você brincar. Sem pestanejar.
Os cinco anos que tivemos em sua companhia foram plenos de alegria, o suficiente para suprir de saudade uma vida. Mas, quer saber? Até dessa saudade que eu sinto, eu gosto.
Fique em paz onde estiver, meu gordo! Nós te amaremos para sempre.
Sua mãe
Trilha sonora deste post
O mundo é um moinho (Cartola) Ay Amor! (Último álbum de Fabiana Cozza – ouça agora: Devuélme Mis Besos) I’ll be there for you (Bon Jovi) E, claro, a inspiração do título: Outra vez (Roberto Carlos)