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Para quem é feito de olhos e ouvidos


Meus olhos, por Luís Tajes

Ser tímido é viver o mundo pelo avesso. Como se a alma aprisionasse o corpo, o silêncio calasse a voz, o medo confinasse o gesto. Como se provasse uma comida morna, mas a engolisse fervendo. Como se passasse a vida dançando dois-pra-lá-dois-pra-cá, enquanto os outros se jogavam na pista, inventando os próprios passos. Ser tímido é aceitar passivamente as pessoas falando em voz alta o que a sua mente murmura. É ouvir os outros externarem exatamente o que você pensa, como se roubassem suas ideias antes que elas fossem expostas.

O tímido se sente traído o tempo todo e põe a culpa em si próprio, na sua incapacidade de se expressar. Teima com os pensamentos, burila as palavras, profere discursos inteiros, mas tudo na imaginação. Frequentemente, se cala. É íntimo da vergonha, que o persegue como um carro desgovernado e sem freio. É adepto do choro escondido e das repostas contidas. É ter uma coleção de selfies de partes do corpo, da própria sombra, de banquinhos vazios de gente, de lindas portas fechadas (tem uma coleção delas mais para baixo aqui no post).

Difícil ser assim. Eu que sei. Fui uma criança tímida, uma adolescente tímida, uma mulher tímida. E o pior: uma profissional tímida. Nem queira saber o que é ser uma jornalista trancada em si mesma. Escolhi o curso de comunicação, com habilitação em jornalismo, porque gostava de escrever e sempre achei que a palavra escrita seria a minha libertação. Não estava errada. Foi e ainda é meu alto-falante, meu amplificador, minha voz.

Mas jornalismo exige um certo atrevimento, algo bem sofrido para pessoas tímidas. Tive muita dificuldade no início da minha vida profissional. Mesmo nos estágios. Ainda na faculdade, entendi que TV seria uma tortura com requintes de crueldade. Não conseguia encarar a câmera sem ver milhões de pessoas por trás dela. Me via como um gigante amarrado, carregado por um monte de homenzinhos, para ser prisioneira num castelo. Ou como uma folha arrancada de uma árvore sendo levada por um exército de formigas malévolas. Seria devorada aos poucos.

O estágio em rádio foi torturante, embora eu adore o meio e ainda deseje muito estar ali de alguma forma. Fui trabalhar na Rádio MEC, que voltava a Brasília depois de muito tempo. Não ganhava nada, trabalhava com o próprio carro – um fusquinha bege, que às vezes pifava e me deixava na mão. Fui escalada para cobrir Supremo Tribunal Federal, Tribunal Superior Eleitoral e Congresso Nacional. Sem nenhuma experiência em jornalismo diário, político, jurídico ou nada que o valha. Penava entre votação de orçamento, julgamento de Collor no STF, eleições gerais no país.

Eu era uma morta-viva. Meu berçário no jornalismo eram salas de imprensa onde estavam repórteres de sucursais de todo o Brasil, experientes, acostumados à concorrência e cientes da importância daquela cobertura. Chegava suando e saía chorando. Tropeçava nas palavras, gaguejava ao vivo, corria para o orelhão para não ter de gravar a matéria na sala de imprensa, rezava por uma sala vazia onde pudesse me recolher. Alguns colegas me ajudaram muito; outros riram de mim. Diria que ambos os grupos me fizeram crescer, pelo amor ou pela dor.

O trunfo de todo tímido é saber observar e ouvir. Fiz isso e tentei não fazer uma cópia fiel do jornalismo que eles praticavam, embora muitas vezes uns plagiassem os outros na maior cara-de-pau. Entrevistas coletivas sempre foram a minha redenção tanto quanto o meu momento de angústia, quando todo mundo perguntava e eu só ouvia. Só de pensar em fazer uma pergunta, eu gelava. Era um iceberg, com a ponta para fora e o corpo todo congelado.

Já formada, saí do estágio para enfrentar os testes nas redações dos dois jornais locais. Não passei em nenhum. Tenho certeza absoluta que não era o texto, mas a voz que faltava. Não conseguia transmitir meu talento com as palavras, embora soubesse que tinha algum. Recorri ao parentesco da minha avó com a família Cabral para conseguir um emprego no Correio Braziliense. Entrei pela janela da indicação, mas fiquei pelo mérito, pela força de trabalho e pela confiança dos chefes imediatos.

Construí uma carreira ali. Quantas e quantas vezes não fui salva pelos fotógrafos e motoristas, que me indicavam o caminho da notícia, os bons personagens, o momento da abordagem precisa. Também aprendi a afunilar meus medos. Eles começavam grandes, mas eu os empurrava para um buraco escuro até que saíssem de fininho.

Tentei me direcionar para uma zona de conforto: a rua. Buscar personagens do povo e histórias reais. Gostava de escutar com profundidade, sem interromper. Chorava nos enterros. Abraçava mães que perderam filhos. Observava as pessoas, os vestígios de acidentes, a decoração das paredes, os quintais das casas. Lia com atenção os relatórios, as ocorrências, os processos. Nas coberturas políticas, queria ficar nas galerias, ouvir os discursos e conversar com pessoas que atuavam nos bastidores. Meu corpo era feito de olhos e ouvidos. Nunca tive a pretensão de dar furos, pelos quais os jornalistas têm fascínio.

Entrei na terapia para, entre outros dilemas pessoais, soltar a voz. Reaprender a falar, dar respostas, fazer perguntas, me posicionar num mundo onde o poder se dá pela oralidade. Na vida adulta, sobretudo, calar é uma opção que faz mal, adoece, empobrece, suprime possibilidades. Depois de anos, a timidez ainda é companheira, mas aprendi que ela pode ser fiel e doce, menos opressora e também poderosa. Só não pode me paralisar, como aconteceu tantas vezes no passado. Lembro-me com carinho de um conselho do meu filho Tomás. Nervosa para fazer um discurso em nome da turma que se formava num curso de mídia digital, ele me disse: “Mãe, faz de conta que todo mundo da plateia está nu e só você vestida”. Bem que funcionou. Nunca despreze a estratégia de outro tímido.

Pecando pelo excesso; não pela falta

Recentemente, passei por uma prova de fogo. Por indicação de uma colega do Correio, fui chamada para concorrer a uma vaga numa assessoria de imprensa. Achei que seria uma conversa com a pessoa com quem trabalharia se fosse selecionada. Mas era um desafio coletivo. Havia um grupo de seis pessoas, com características e experiências bastante heterogêneas. Todos ansiosos por um recomeço. Tínhamos de falar sobre trabalhos anteriores, sobre o que gostávamos, como nos definíamos. Tipo uma venda de si mesmo, competências e talentos. Difícil, hein!

A experiência me fez ver que melhorei com o tempo. Não tremi por dentro, nem suei frio. O passar dos tempos e as duas décadas de trabalho em redação me deram confiança. Dias depois, veio a resposta: eu me encaixaria bem numa vaga sênior, pela experiência; o salário que tinham disponível não pagaria meu valor. Se é verdade ou não? Não faço ideia. Não ganhei a vaga, mas não tive a sensação de ter sido preterida pelo que disse ou deixei de dizer. Entendi que posso não ser aprovada, nem escolhida e que tudo bem. Hoje, tenho a certeza que prefiro pecar pelo excesso do que pela falta.

Ultimamente, tenho me preparado para vencer a timidez em nova escala. O empreendedorismo te obriga a sair do armário, testar novas possibilidades, encarnar uma persona que precisa mostrar a cara, dizer a que veio. A confiança que o jornalismo me deu não será suficiente, tenho certeza. Não poderei passar despercebida, nem me esconder no cantinho, nem chorar baixinho, nem correr para cantar no banheiro ou dançar só para o espelho. Serei uma tímida diante de um exército de olhos inquisidores, julgadores, mais ou menos generosos. Vou tentar ser, de novo, só olhos e ouvidos, para então contar para vocês como foi.

Trilha sonora deste post:

Sódade – Cesaria Evora

Caravanas – disco novo do Chico Buarque

Você abusou – Antonio Carlos & Jocafi

Acorda pra vida - Nazire

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