De Corumbau ao Patacho: o mar como testemunha
O relógio marca 9h. Hoje é sexta-feira, 17 de fevereiro. O carro está abastecido e a bagagem, arrumada. Embarcamos, eu e meu marido, Luís Tajes, rumo a Ponta do Corumbau, no extremo sul da Bahia. Decidimos fazer a viagem muito calmamente, em três dias. Não foi apenas a passagem aérea cara que nos fez pegar a estrada, apesar da distância desde Brasília e do pouco tempo de estadia por lá. Foi uma vontade de chegar devagar.
Estávamos indo em direção às nossas mais doces lembranças. Ao mesmo mar quente e calmo que nos acolheu na primeira viagem como um casal, há mais de uma década. Não se pode buscar o passado com as mesmas expectativas de outrora. Não precisávamos reencontrar a paixão daquele tempo; nunca a perdemos. Queríamos apenas um lugar de conforto para decidir os próximos 10 anos, embora soubéssemos da impossibilidade de tal feito. A vida é mesmo imprevisível, mas o futuro nos aguardava.
A ideia era apreciar a vista até lá, contar as placas e as moedas do pedágio, anotar a quilometragem a cada parada no posto, ver os caminhões passando e penteando o mato que cresce nas encostas, ouvir de Frank Sinatra a Mart’nália, ler a biografia de Rita Lee e os ensinamentos do budismo; admirar a grandiosidade dos paredões das serras no percurso do cerrado ao mar.
O caminho já fazia parte do que nos aguardava. Treinava a nossa mente para viver o aqui e o agora, para curtir um lugar paradisíaco, sentir a natureza nos conectar ao que, de verdade, somos: seres humanos que precisam de muito pouco para viver com plenitude. Para alguns, viagem distrai. Para nós, é o que permite centrar o “eu”. É a nossa meditação, a atenção em nós mesmos e um no outro.
Corumbau nos tirou a internet, a televisão, as incomodações cotidianas, o telefone tocando, o chamado da cidade. Mas nos deu o leste, vento repentino que leva o sol, traz a chuva e se despede tão de repente como vem. Deu também o hotel completamente vazio, ruas de terra deserta, o mar só para a gente. Forneceu o siri, o bodião, o arroz de polvo, a lagosta, a original de garrafa gelada. Emprestou a vista do pôr do sol, os barquinhos indo e vindo, a praia limpa. Por fim, Corumbau nos deu o que fomos buscar: certeza. Lá, tomaríamos a segunda maior e mais importante decisão de nossas vidas – a primeira foi a escolha mútua e feliz de partilhar a vida.
Por algum tempo, a dúvida sobre nosso futuro profissional nos perseguia. Na verdade, nos torturava. Por vezes, nos colocava num lugar de angústia insuportável. Como deixar um emprego estável de mais de 20 anos e se lançar no mercado em tempos de crise, em plena meia idade? Haveria trabalho para nós? E os filhos, quatro dos cinco ainda dependentes, como garantiríamos uma renda tamanho família? E o plano de saúde, as férias, o décimo terceiro, a prestação do apartamento?
Quando digo que Corumbau nos deu certezas, não quero dizer que nos deu respostas. Contraditoriamente, o que eliminou as dúvidas foram as novas perguntas. E se o que achamos tão seguro, na verdade, não for tão seguro assim? E se todos os direitos que temos forem engolidos por este mesmo momento de crise? E por que precisamos necessariamente de um plano B todo estruturado se já sabemos que o plano A simplesmente não nos serve mais? E quem disse que a angústia de ficar é menor do que a de ir?
De repente, o equilíbrio e a paz deram o ar da graça perdida há alguns meses. Se ainda estávamos confusos sobre a hora de deixar o emprego, começamos a contar ali o tempo em que ela chegaria. Depois de cinco dias de conversas e também de longos silêncios, saímos da Ponta do Corumbau e vencemos os 1.500 km de volta a Brasília unidos no propósito, com certa nostalgia, vontade de ficar um pouco mais na praia e o medo da certeza revelada. Conseguiríamos, enfim, sair do jornal que era nossa segunda casa?
Conseguimos. Dia 17 de abril, exatamente dois meses depois da saída de Brasília com destino a Corumbau, estávamos no RH da empresa para irmos juntos ao Sindicato dos Jornalistas formalizar a rescisão contratual.
Onde estão as pessoas felizes?
O relógio marca 7h. Hoje é segunda-feira, dia 26 de junho. Estamos no aeroporto e vamos pegar um avião para Maceió; de lá, em carro alugado, seguiremos para a Praia do Patacho, em Porto de Pedras, litoral norte de Alagoas, a chamada Rota Ecológica. Desta vez, temos pressa.
Já se passaram dois meses e nove dias sem carteira assinada, sem pensar em pautas, fotos, matérias de jornal. A vida agora se resume a desenhar uma nova rotina e um novo modelo de negócios que gere renda. Mas garantir subsistência nessas condições pressupõe saúde mental, equilíbrio e novas certezas. A principal delas: saber que é possível mudar tudo, recomeçar, mesmo que seja do zero. E como sabê-lo, meu Deus?
Entre as inúmeras estratégias traçadas nesse sentido, uma delas tornou-se naturalmente prioritária: encontrar pessoas que fizeram o mesmo. Li muitos e muitos relatos de gente que passou pela ansiedade natural da mudança. Muitos caíram e levantaram. Outros fracassaram antes de conseguir. E alguns foram felizes desde o primeiro momento. Essas histórias precisavam ser mais palpáveis para reduzir a pressão. Era preciso enxergá-las, sem abstração, sem imaginação.
Fomos em busca de um casal dos meus arquivos: Guido e Mariella, donos da Pousada Xuê, na Praia do Patacho. Porque, havendo mar, meus amigos, tudo fica melhor. Desde que vi o lugar (no programa Casa Brasileira), com apenas cinco casinhas simples e confortáveis, a poucos passos do mar, desejei estar lá. Guardei a vontade. O marido se sensibilizou com a minha busca meio insana “por gente feliz e nada arrependida” e providenciou o embarque.
Guido Migliorini e Mariella Facci saíram de São Paulo em busca de um modo de vida mais simples e saudável. Ergueram um lugar onde as pessoas pudessem ter temporariamente o que eles conquistaram de forma permanente. Cuidam de tudo com apreço pelo detalhe, o que torna o lugar simplesmente irresistível. O conforto proporcionado pela atenção deles é somado à qualidade da estadia, do lençol de 300 fios ao chuveiro delicioso com aquecimento solar.
Chef, embora ele prefira cozinheiro, com passagens por restaurantes como D.O.M e Emiliano, Guido cuida de deixar sublime o que você o que vai comer. Se for lá um dia, não despreze nada do cardápio porque cada item promete boas experiências gastronômicas, mas tudo é ainda melhor quando se prova. A dúvida sempre ficava entre repetir um prato ou conhecer outro.
Nem podemos dizer que a falta de sorte nos pegou de jeito e rendeu dias ininterruptos de chuva, pois a comida foi nossa redenção. Fomos embora fartos de delícias, sem ver o sol, com apenas um mergulho no mar, mas com receitas divinas que o casal fez questão de compartilhar. Pão de azeite, bolos caseiros, iogurte dos deuses, pudim de doce de leite... Vocês não fazem ideia do que significa para pessoas como nós, que têm alma no estômago, comer o tartare de abacate com lagostim que sai da cozinha de Guido.
Já Mariella é o afago em pessoa. Guiou-nos pelo caminho, nos esperou na porta. Desenhou mapa. Sugeriu passeios. Tratou de reafirmar que o único compromisso ali era com um estado de paz inescapável, o mesmo que eles aparentemente encontraram. Nem precisamos perguntar o que fomos lá para saber. Felizes, satisfeitos com a mudança? Bastou olhar para ter essa certeza. De quebra, eles eliminaram uma dúvida crucial que me persegue desde a infância. Nunca soube se gostava mais de azul ou verde. Eles juntaram as duas cores numa casinha linda, com janelas de madeira, e nos colocaram para morar lá durante cinco dias. Poderíamos morar ali para sempre. Assim como eles.
PS: como eu prometi,a trilha sonora do post:
Sugar Thieves (playlist) Chico Buarque (Tua Cantiga, além de outras) Elis Regina (Como nossos pais) Luiz Melodia (playlist, para matar a saudade)