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Ouça os amigos; fale com estranhos


Cristine Gentil nas janelas de Inhotim. Foto de Luís Tajes

No sétimo dia, eu decidi escrever. Exatamente uma semana após sair do emprego, abri um canal de comunicação comigo mesma. Era para ser um diário. Uma tentativa de completar frases desconexas, organizar os pensamentos que dançavam na mente e, quem sabe, construir uma narrativa dos meus dias e noites, tão novos quanto promissores; tão diferentes; tão vazios, mas recheados de dúvidas. Quem sabe assim conseguiria me dar respostas para tantas perguntas.

Foi uma pescaria insana por palavras soltas ao vento. Elas só vinham na hora do banho, durante a caminhada, no meio da noite, em invasões bárbaras nos meus sonhos. Textos inteiros brotando na cabeça e morrendo no papel, como frutas que caíam ainda verdes do pé. Insights perdidos são como pó de ouro escorrendo entre os dedos. Diante do computador, tudo simplesmente sumia. Precisava dar um corpo a essa alma fugidia.

Há uma coisa que funciona nesta vida: o esforço repetitivo, a disciplina, a rotina. O que parece chato te premia com resultado. No início, me forcei a escrever diariamente; depois, acabei abandonando o diário, mas não totalmente a escrita. Hoje, tenho guardados relatos importantes dos meus sentimentos em fases distintas dos últimos quatro meses. Eles são imprescindíveis agora, no momento de compartilhar com as pessoas essa busca por novos rumos.

Hoje, quando leio o que escrevi, penso na estranheza dos primeiros dias sem crachá. Um emprego pode não ser você, mas, quando se está nele por muito tempo, o sentimento é de pertencimento mútuo. Fiquei impregnada dele. Meu alterego era Cristine Gentil, do Correio Braziliense. Um ser que tinha a própria biografia, humor ciclotímico, preferências de leitura, barra de favoritos específica, uma equipe-família, duas editorias, páginas de jornal até. Essas eram como um patrimônio, propriedade privada, louvo que nunca tenham sido um latifúndio improdutivo.

Não era para ser exatamente assim, afinal era apenas um trabalho, mas era simbiótico - fazer o quê?. De forma que a despedida do trabalho foi também um adeus para alguém que morava dentro de mim e que, é bem possível, fosse até mais íntimo.

Os amigos que dão F5 na minh'alma

Dissociar-se é preciso. Foi até fácil romper com aquela rotina certa e atribulada. Tenho saudosismo, nostalgia, memórias e afetos, não chega a ser saudade. Mas foi e é difícil manter o que precisa ser preservado: os amigos, por exemplo. Recebi, ao sair do jornal, incontáveis demonstrações de carinho, de força, de admiração. Cada mensagem foi um degrau acima. De verdade. Nunca poderei agradecer.

Procuro ver pessoas queridas. Mesmo quando a imagem delas aparece só na minha cabeça, congelada pelo tempo. Aos poucos, a maioria se acostuma a não te ver todo dia, a não querer sua companhia sempre, a não lembrar da sua risada, a substituir sua presença. É um processo natural. Não é deixar de gostar, é parar de sofrer a ausência.

Algumas, no entanto, ficam, teimam em se fazer presentes, mandam mensagens, querem te ver, vão até você. E como é bom isso... São elas que dão aquele F5 na minh’alma, salvando dia a dia o acervo de boas memórias que desejo tanto guardar.

Foram esses amigos que me ajudaram a ver que essa nova pessoa em construção tinha muito da antiga. Deixaram essa estranha aqui tão segura, a ponto de querer se relacionar até com outros estranhos. Naquela mania de procurar histórias de pessoas que mudaram de vida, cheguei a importunar um deles de forma especial. O e-mail enviado para o estranho era mais ou menos assim:

"Oi XXXXX,

Em 2014, recebi o e-mail com o link abaixo, que contava sua história... lá longe...

Guardei!

Recentemente, saí do meu emprego, primeiro e único, no qual fiquei 22 anos. Pois bem... Foi mais cara e menos coragem, devo confessar. Fez-se maior o desejo de se reinventar, acalentado em banho-maria enquanto torrava os próprios miolos na cozinha industrial que se tornou o "fazer jornal". O fato é que... numa faxina geral para tentar organizar tudo o que ficou pendente em tantos anos, achei o e-mail com o link de sua história. Diria que, levantando a poeira do passado, tenho encontrado algum alento. E, de certa forma, a sua história ajuda a minha. Não no enredo em si, mas no propósito, tipo: "Não estou só, nunca estive só". Você pode se perguntar aí: 'Por que essa pessoa está me escrevendo esse e-mail?' Também não sei a razão deste e-mail, apenas tive vontade de saber o que aconteceu depois daquela matéria de 2014. E vontade é coisa que dá e não passa em pessoas desocupadas, como agora estou. O jeito foi escrever, correndo os riscos do seu julgamento. Vi que o seu negócio está aí, à prova de todas as crises... Que bom!

Diferentemente de você, que viveu experiências diversas no campo profissional e tinha uma linda ideia em mente, eu passei anos mergulhada de corpo e alma num só emprego, não tenho plano B para transformar em A. Apenas achei que nunca teria se continuasse onde e como estava...

Eu sigo por aqui em intermináveis mergulhos cibernéticos, com um milhão de ideias pipocando no cérebro, sem foco, mas também sem arrependimentos, o que já é um bom começo. Também nunca li tanta bobagem de autoajuda, intermináveis artigos e vídeos ridículos de (pseudo)coaching, além de um compêndio de conselhos que me fazem querer cortar os pulsos.

Talvez por isso esse e-mail... em busca de histórias de verdade... Ou simplesmente de conteúdo. Me indica um livro?!

Obrigada e desculpe a invasão. "

Fim do e-mail.

Dias depois, recebi uma resposta curtinha: “Oi! Tudo bem? Vou te responder com calma, não é invasão. Volto em breve. Um grande abraço”.

A resposta com calma nunca veio, mas também nunca esperei. Fiquei satisfeita com a primeira. Porque, no fundo, nessa linha sintética, o que ele me disse foi: “Você merece uma resposta melhor do que eu poderia te dar agora”.

Você aí pode achar que a minha interpretação é fantasia provocada por carência elevada à máxima potência. Mas juro que não é. De verdade, espero poucas respostas que venham de fora. Como me disse o incrível fotógrafo Luis Humberto, na entrevista que fiz com ele para a série Maturidade Compartilhada, publicada na Revista do Correio, “a urgência da gente não é a urgência dos outros” (veja parte dela no vídeo abaixo).

É preciso reconhecer que não somos prioridade sempre. Desde esse e-mail, continuo abordando estranhos virtualmente, muitos me ignoram e outros me respondem. Agradeço também pelo silêncio, que às vezes diz muito mais.

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